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REFAZENDA FEZ
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Carlos Cardoso é engenheiro, natural do Rio de Janeiro. É considerado  o representante de uma nova poética no país e apontado como destaque de sua geração. Sua produção literária é marcada por uma escrita singular e de dicção própria,  o que torna sua obra independente e única. Vencedor do prêmio APCA 2019 de melhor livro de poesia, o poeta conquistou o reconhecimento de alguns dos principais críticos literários e jornalistas especializados em literatura do país por apresentar uma poética original e autônoma. “O poema perambula, mas tudo permanece intacto – eis a lição de poesia”.  Silviano Santiago “É um grande prazer ler poesia como a de Carlos Cardoso, que, fundindo  o entendimento e a imaginação, e nos levando a percorrer caminhos originais, inesperados e abertos, enriquece nossa vida. Por isso, brado:  viva Na pureza do sacrilégio!”  Antonio Cicero “Num só verso o universo se condensa, e cabe à poesia ritualizar perpetuamente a encenação de um mundo sem origem e sem fim. É o que faz, com talento e consistência, Carlos Cardoso, em Melancolia”.  Antonio Carlos Secchin “Um livro belo, que mostra o poeta, em voo solo, em busca do ponto preciso  no qual a melancolia se descobre palavra”.  Heloisa Buarque de Hollanda “Os poemas do núcleo do livro Sol descalço (que será lançado pela Editora Record em 2021), de Carlos Cardoso, integram o que há de melhor no cenário da poesia contemporânea brasileira”. Ítalo Moriconi “A poesia de Carlos Cardoso é mais ligada ao aspecto reflexivo sem abrir mão de um motivo musical de fundo. Ao mesmo tempo é capaz de esconjurar a utilização da rima, como para encontrar uma espécie de admirável mundo, cujas sonoridades, não fronteirizadas, possam perder-se numa grande aventura”. Marco Lucchesi 
Bulgária 2019
áudio livro
livros traduzidos
em breve
Vietnã 2020
2017
2019
Ucrânia 2020
3
heloisa buarque de hollanda sobre o livro Melancolia
2
depoimento de antonio Cicero
4
depoimento de antonio carlos secchin
1
silviano santiago lê o poema “o rolar da pedra"
[nota]
qual das guerras...
brincando
sagrada fosse a fome
arquitexto
o caminho dos cavalos
SOL DESCALÇO Em seu livro de estreia, o poeta Carlos Cardoso dialoga diretamente com a produção do surrealismo na literatura brasileira, que tem Murilo Mendes e Jorge de Lima como maiores representantes. Na busca por sua voz, Carlos Cardoso apresenta uma expressão poética autêntica, como afirma Afonso Henriques Neto no texto de apresentação. Seus versos, ao longo do percurso, indicam a construção de um corpus poético introspectivo, com instantes luminosos, que conduzem o leitor a ampliar o olhar fora do cotidiano ordinário, focando a atenção para além do lugar comum. Um trabalho marcado por versos reflexivos, através da conversa intertextual com pares: Gilberto Mendonça Teles e Eucanaã Ferraz, poetas cujo o cuidado com a linguagem é condição primordial para construção dos versos.  Rio de Janeiro: 7Letras, 2004 ISBN 85-7577-139-6  60 páginas 
ARQUITEXTO                                                                                                                    para Eucanaã Ferraz Corações crispados, paixões acampadas nos olhos – segredos!? não demonstre nenhuma lágrima, todo desejo é oculto enquanto vale. “Tudo e nele nada se contém”. Ouso, imploro aos deuses que não rimem as palavras, afinal o silêncio ecoa, e os verbos elocubrados no espaço são mais que metáforas, são passos, em que o poeta vai além dos laços. Pô, esses alvéolos de arquitextura, tão úmida e forte ainda ressoam. E não chore amigo, a vida é a tenra carne da morte.
arquitexto
BRINCANDO                                                                para Gilberto Mendonça Teles 1. Talvez as palavras me fujam e eu me disfarce de poeta, o silêncio é minha casa e a construo em linha reta. 2. Talvez as palavras me fujam e eu me disfarce, cortejante, o silêncio é uma pedra e a chamo diamante. 3. Talvez as palavras me fujam e eu me disfarce de criança, o silêncio é meu pecado e meu verso a esperança. 4. Talvez as palavras me fujam e eu me disfarce, assim, amando. o silêncio é minha arte, e o criei assim, brincando.
o caminho dos cavalos
O CAMINHO DOS CAVALOS I com os mapas do informe rastreei a cidade dos mortos ossos e paraísos e gesso em estilhaços oravam ao solitário vôo do ganso a morte os demônios e os anjos habitavam os estábulos sagrados, casa sobre pedra era segredo pocilga rosnando favos guerra faísca tudo era desordem nada era poema palavras ossos paredes sob a chuva de sangue e a cidade dos mortos era pedra pedra ossos cânticos talvez fossem o príncipe de gelo a tangenciar a morte nos caminhos dos cavalos, rochosos ocultos perdidos nos favos II a dor a morte e os cogumelos de areia esculpiram o sebo e o sal  nos olhos da sereia o sol e o mar sobre as planícies de Israel cantaram aos pés do chifre do unicórnio perdido Adão e Abraão e as vértebras de Jacó deram um nó na garganta da efêmera voz em desalinho baleias vertigens e fêmeas em seus ninhos pegadas da misericórdia de um cego poeta que nasce a cada ferida e morre ferido em rochas gesso e ossos verdes de luz III O fel de Cristo e os porões do inferno feitos a patadas de gente e esferas de fogo doce farpa no cérebro ardente da palavra túmulo caminhos descobertos prodígios meninos pó destinado a Cristo, raposa copiosa a engolir a carne áspera garganta a reinventar o inferno velhas agonias no cenário cambiante do pássaro ruidoso fluida gestação de tudo e tudo é nada cuspida de vinagre sobre pedra palavras vestido branco da metáfora absurda folhas ferro fogo longos olhos ébrios espelhos do túmulo cavado pelas patas do poeta ovos celestes cálices feixes do mito, minto oco vento, memória áspera, raiz do pensamento IV confundi os cotovelos mas não o coração repousa no caminho dos cavalos o submerso domínio da palavra morte serpentes mordidas, diabos feridos, cidade dos mortos a ressurgir na sombra do medo dos cegos olhos que amanhã tocarão as órbitas sagradas da tempestade raiz da unha crânio róseo do chumbo êxodo lírio em sol e mel Vênus rastreada além dos jardins d’alma espinhos recurvados jamais reconhecidos como pedra palavras coices no caminho do fogo espectro imaculado nos caminhos dos cavalos, rochosos ocultos perdidos nos favos
QUAL DAS GUERRAS QUE RESSUREIÇÃO? quão dourado é este sol terra firme mar intenso qual das guerras que ressurreição? há de fecundar do meu invento. oh, alumiar a Terra Santa não é cria de pouco vento qual das guerras qual razão? surgirá do homem vão, e lhe dará contentamento
qual das guerras...
sagrada fosse a fome
SAGRADA FOSSE A FOME sarcástico na garganta do apego um gigante branco chamado fome ressoa abrasador ver criança pescoço da pele comer coxinhas de restos humanos e putas castas a orar nas catedrais do voto é farejar o absurdo na calçada do abismo tão negro como o carvão só a mandíbula doce sagradas primaveras por onde navego cogumelo a só no escuro, criança criança cidades demiurgas suplícios infindáveis selvagens sacerdotes na raiz da Terra Fome sarcástico é o senhor sarcástico é o senhor correio de esmolas, crianças famintas em meu quarto esguio salmo túmulo (grite) coisa muda ferradura sem curva trêmula a voz da fome grasna o efeito do feto morto na pança da mãe cavalos e anjos em prantos jovens príncipes, criança criança fogo puro a alimentar a razão (grite) sarcástico é o senhor sarcástico é o senhor
o poeta e seu poema
esculpir a lua a nanquim
cada osso
o bonde do silêncio
a quem interessar possa
DEDOS FINOS E MÃOS TRANSPARENTES O segundo livro de poemas do poeta Carlos Cardoso é uma confirmação de seu ofício na literatura brasileira através de um olhar sensível ao cotidiano e a produção literária contemporânea. “A beleza alucinatória de seus achados poéticos” – como destacou Carlito Azevedo a respeito da originalidade da poética de Carlos Cardoso em sua estreia – abre espaço para imagens mais delicadas, sem perder “a fúria motriz das imagens alucinadas”. O poeta volta a atenção para o cuidado com os versos, trabalhando a sutileza da escolha de cada palavra, aliada a ousadia de seguir adiante: “vá à ponta de um abismo, / crie coragem, respire fundo, e dê um salto”. É, justamente, a coragem de dar um salto em sua própria linguagem que o poeta busca neste livro, para abrir novas janelas em sua trajetória. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005 ISBN 85-7577-220-1 124 páginas
A QUEM INTERESSAR POSSA Por entre lábios de nome todo amor pinto palavras que se afiguram no incerto, como labirintos que desaguam no deserto e lâminas que assassinam o sempre certo. O infinito é traçado a dedo e tinta, como borboletas bailando sob nuvens, e beija-flores chamando todo amor. Ergo no peito a história de uma chama, como o erguer de uma estátua que proclama. Cada passo de um amor que arde, queima, estraçalha, mas não ama.
CADA OSSO Quando nossos corpos fundirem-se, cada osso se desintegrará, o gozo irá surgir aos poucos, até que nossas almas se toquem, meus olhos não chorarão prazer, meu corpo não soluçará dor, mas reagirá forte, a qualquer tentativa de cura.
ESCULPIR A LUA A NANQUIM Uma maçã com dez pecados, a primeira mordida quem Dara? Os mares, os raios, as estrelas. Eu? Mesclar o azul com o amarelo, e nos dias de prazer cantarolar. Rima que rima casa sol e mel. Desenhar a lua, esculpi-la nua sobre o papel.
O BONDE DO SILÊNCIO Já é noite e o bonde do silêncio permanece intacto. Nas ruas as pessoas observam os pássaros a sobrevoarem as correntezas. E tudo permanece intacto. Os amantes, os Deuses, as estátuas. Só a poesia perambula. Acaso os versos caminham ágeis e desapercebidos. E tudo permanece intacto.
O POETA E SEU POEMA Vigas e paredes relutam em moldar-se, Hermética paisagem de pedra areia e cimento. Hipócrita o poeta xinga sintaxes, chuta as palavras, E crava estacas profundas na ânsia de tocar o intangível. Soberbo ele rende-se, dúbio e orgulhoso do nada.
NA PUREZA DO SACRILÉGIO Depois de mais de dez anos, Carlos Cardoso volta à poesia com Na Pureza do Sacrilégio. O livro chega com a chancela de textos elogiosos de Antonio Cicero e do crítico Silviano Santiago. “A escrita poética desnuda a pureza pelo sacrilégio para purificá-la ainda mais; desnuda o sacrilégio pela pureza para conspurcá-lo ainda mais”, escreve Santiago, que aproxima Carlos Cardoso a Fernando Pessoa, Octavio Paz e João Cabral de Melo Neto para apresenta-lo ao leitor.  O crítico apoia-se nas teorias do linguista russo Roman Jakobson para apontar o oximoro – aliança de palavras aparentemente contraditórias, que em vez de excluírem-se, complementam-se – como uma das chaves de leitura da obra.  “O poema perambula, mas tudo permanece intacto – eis a lição de poesia”, escreve.  Além do prefácio de Silviano Santiago, o livro tem a orelha assinada por Antonio Cicero, que aponta com precisão “uma das grandes qualidades deste livro é que nele se encontram diversos poemas que oferecem ao leitor experiências originais, intensas e verdadeiras”.  O livro também é construído em uma atmosfera em que a poesia e as imagens se comunicam de forma harmônica, composto por vários quadros produzidos pela artista plástica Lena Bergstein inspirados nos poemas. Sem dúvida, Na Pureza do Sacrilégio, de Carlos Cardoso, é um livro FORTE que apresenta ao leitor muitos motivos para refletir sobre os vários temas escritos ou sobre a vida que é o tema principal.   São Paulo: Ateliê Editorial, 2017
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camaleão
ventania
eu serei noite e serei dia
o poema, o começo
CAMALEÃO Como um camaleão rastejo pelo silêncio do meu quarto. É poesia o encontro das paredes? São ópio as estrelas aplumadas em cada esquina do meu ego? Ou será benevolente a lágrima que escorre por minh’alma quando brado louco por felicidade? Os arredores repletos de melancolia ainda se refazem do gelo. A ausência de um ombro, de um corpo catatônico que seja, faz-me lembrar o quanto era bom o diálogo com os meus olhos. Tocar a escuridão quando a voz do desespero insistia no apego. Mozart me enlaça com um fio de náilon na garganta. São as trevas rodeadas de luzes intangíveis, metáfora do abominável descaso público a um quase morto. Ninguém, nem mesmo a solidão, tem mãos assim tão pequenas.
EU SEREI NOITE E SEREI DIA Tenho uma outra face que não é a rebeldia do exílio, conto com a morte e uma palavra de alívio para quando o sermão de Maria ocultar o sublime sonho do unicórnio perdido, saberei que o tempo é apenas uma gota d’água a beber o saber etéreo da fugaz sabedoria, sempre que as coisas forem tristes e o rio guardar em si, o ser por onde o ser não navega, eu serei noite e serei dia, e serei dia e serei noite.
NÃO MAIS ESTRANHO QUE ISTO Não consigo ver o que me é dito. São janelas abertas trazendo o vento que aporta em qualquer porto. E você ainda perambula em busca do que não lhe pertence. E por vezes retornas, ao que tanto procuras, e tão perto está. Deve ser essa ostra fingindo-se de borboleta. Com essa máscara de inconstância que você veste a qualquer preço. E se esvai, e pronto, é o começo. Retornas de asas abertas a exalar paixão ao sol do meio sol. Ainda ontem a resplandescência dos seus olhos cintilou o sono sufocante do querer e não querer, ouço passos a caminho da felicidade, e ouso soprar as incertezas que pairam nos porquês. São essas figuras do passado que volta e meia invadem o presente. E em um alívio de viverem acorrentadas, respiram o perfume de sua essência. E eu continuo a não saber o caminho da solidão dos seus braços.
o poema, o começo
O POEMA, O COMEÇO Indago, por onde iniciar essa resenha. De dentro para fora, de um lado para o outro, sem foco, com rima, com ou sem sentimento. Lamento, tormento, piedade, felicidade. Simples feito a natureza, complexo como a humanidade, Agudo, fraco, obtuso, disforme, angelical ou demoníaco, soberbo, decente, incoerente, desejoso, voluptuoso e indiferente. Com as mãos sujas de argila, o copo cheio de tequila, e aquela menina que tanto desejo, seu beijo. Ou abordando a tristeza, a sutileza, as formas de beleza, as luzes, a ribalta. Por onde começar essa bossa, esse texto, essa nossa vossa discordância, pela juventude, tema de infância, pela infância, pureza e relevância. Afinal, iniciarei pela instância, ininterrupta discrepância.
VENTANIA                                                                    para Antonio Cicero Iluminar a sombra e torcer pelo sol até que venha a chuva, sapatear pela escuridão com trovões e ventania, molhar os dedos sentir o frio e o arrepio que é estar. .
ANTONIO CICERO A princípio o Carlos Cardoso é, neste livro a gente vê, muito original, muito estimulante; porque na verdade tem muitas aproximações inesperadas. Ele traz junto a razão, o intelecto, a memória, a imaginação, a emoção; tudo se confunde de repente, e a sonoridade também e a gente não sabe mais, a gente se desloca do mundo convencional em que a gente vive normalmente e entra em um outro mundo que é esse que ele abre com suas palavras. É por isso que eu gosto muito. [...] Na Pureza do Sacrilégio é um livro extremamente interessante e estimulante. Na verdade, ele realiza bem o que o próprio título promete. O título diz: ‘Na Pureza do sacrilégio’, parece um oximoro, como diz o Silviano Santiago. Num primeiro tempo, a gente pensa nisso e, quando pensa, quanto mais pensa, mais vê o seguinte: que a pureza do sacrilégio pode estar justamente no fato de que a pessoa que comete o sacrilégio não se guia pelos parâmetros convencionais, segundo os quais aquilo que é sagrado é sagrado e o que não é sagrado não é sagrado. Ao contrário, o poeta é capaz de reconhecer outras realidades, outros fenômenos como sagrados que não se entende que são normalmente tidos como tais. De modo que é com toda a pureza que ele é capaz de cometer o que, convencionalmente, se chama de sacrilégio, o que, na verdade, para ele, não. Para ele não é sacrilégio, mas é a verdadeira realização da sua mais pura apreensão do mundo, da sua maneira de se relacionar com o mundo. Eu penso que na realidade, normalmente, nós nos guiamos – isso não tem jeito, tem que ser assim mesmo –, nós nos guiamos num mundo convencional, num mundo cotidiano. Nós temos que nos guiar por uma razão instrumental, utilitária, uma razão, segundo a qual, nós fazemos determinadas coisas tendo em vista determinados objetivos. Cada objeto tem um determinado sentido convencional, também, nesse mundo. Cada pessoa, a gente vê as pessoas, de maneira geral, com a nossa tendência, também, a ver de maneira instrumental, é a razão instrumental. Essa é a maneira utilitária da gente ver quase todas as coisas. A própria linguagem, afinal de contas, é um produto dessa razão crítica que separa as coisas umas das outras de determinadas maneiras convencionais que são importantes para a nossa prática. O que acontece na poesia? O poeta, a poesia, nos abre uma outra maneira de apreender esse mesmo ser e isso se encontra muito claramente aqui em vários poemas do Carlos Cardoso. A gente vê, por exemplo, no poema Embaralhado Pela Neblina: ‘Por mais que tente contê-lo, meu coração bate bravamente. Então refaço o caminho dos ventos, embaralhado pela neblina’. Você refaz embaralhado por uma neblina que não permite a você, na verdade, a apreensão convencional do mundo. Mas essa mesma recusa do convencional, da apreensão utilitária, da apreensão instrumental do mundo, é também o que permite a você ter outra apreensão, que eu diria não ser uma questão de apreensão estética, porque seria reduzir, na verdade, um pouco a coisa. Mas é uma apreensão, eu diria uma apreensão poética do mundo. Então, é isso que se encontra nos poemas de Carlos Cardoso, em vários poemas dele. [...] Eu vou ler um poema do Carlos Cardoso, ‘É que o Vento Cresce à Medida em que o Vento Sopra’, e vou explicar: ‘Há uma dor mineral em meu corpo, dizem das flores que elas florescem na primavera, e que o vento cresce à medida em que o vento sopra. Há um verbo ilustre em meus versos, e eu amo os poetas e a poesia porque são belos, e as coisas porque são brutais’. Eu acho extraordinário isso porque, na verdade, o brutal parece oposto, à primeira vista, como se fosse o oposto do belo, mas, na verdade, o brutal, de bruto, é o que não é já convencional, o que não é unânime, o que está em outra dimensão. Então, na verdade, você percebe que, ao ver a beleza, ao achar belo o que é brutal, é achar belo exatamente aquilo que não é convencionalmente belo, mas que está ali e que, de certa maneira, se opõe à sua maneira tradicional de apreender. Então, eu achei extraordinário, esse poema, por falar uma verdade profunda, a meu ver.”  
antonio cicero
marco lucchesi
paulo werneck
antônio carlos secchin
silvano santiago
agnaldo josé gonçalves
manuel da costa pinto
heloisa buarque de hollanda
rumen stoyanov
ítalo moriconi
antônio carlos secchin
SOL DESCALÇO Afonso Henriques Neto Quando Carlos Eduardo Cardoso me procurou, em meados de 1993, com um caderno de flashes poéticos e fragmentos de um estranho diário, senti logo a presença, apesar da fatura textual então bastante informe, de uma sensibilidade afeita aos ventos da criação literária. A luta com as palavras (tantas vezes vã, conforme o nosso Drummond), no sentido de combate para arrancar da treva um punhado de luz forte com que iluminar e emprestar sentido à nossa efêmera contigência, era patente em Carlos Eduardo, denunciando uma dolorosa busca de autêntica expressão poética. Lembro de nossas conversas, meu tom algo ‘professoral’ a indicar leituras ao poeta iniciante, a postura tímida do jovem ‘aluno’ no início, e a boa camaradagem que acabou por se estabelecer entre nós.. Das leituras de bons poetas, Carlos Eduardo acabou por encontrar em Dylan Thomas um companheiro inseparável, uma ‘afinidade eletiva’ sem dúvida definitiva. É de se ver, assim, as suas homenagens prestadas ao bardo galês ao longo do livro. Gosto de muita coisa do livro e cito alguns desses momentos de forte voltagem, com imagens e metáforas de boa qualidade, a revelar, como disse, o poeta: “o ódio esculpido pela flor imóvel deixa queimar o focinho do porco”; “um gigante branco chamado fome, ressoa abrasador”; “ovos celestes cálices feixes do mito, minto / oco vento, memória áspera / raiz do pensamento”; “latente lâmina cravada no coração dos pássaros”. Ou ainda pequenos poemas de boa fatura: “que caia o amanhecer / o raiar do entardecer / que os dias acumulem-se / não na incerteza / mas na pureza do scarilégio”. Em suma, que este livro inaugural seja, como tudo parece indicar, o início do longo percurso rumo à construção de um corpus poético sempre disposto ao salto mortal, ao esclarecimento das lâmpadas do enigma.  Texto de orelha do livro Sol Descalço (7Letras, 2004)
antonio cicero
carlito azevedo
rumen stoyanov
silviano santiago
joel rufino
afonso henriques neto
heloisa buarque de hollanda
DEDOS FINOS E MÃOS TRANSPARENTES Joel Rufino O Poeta e seu Poema Vigas e paredes relutam em moldar-se, Hermética paisagem de pedra areia e cimento.  Hipócrita o poeta xinga sintaxes, chuta as palavras, E crava estacas profundas na ânsia de tocar o intangível. Soberbo ele rende-se, dúbio e orgulhoso do nada. Entre os peladeiros, quando aparece um cobra desconhecido, se emite um juízo frio e definitivo: "Sabe jogar". Também nas tabernas de Lisboa, o melhor que se pode dizer de um cantador é: "É fadista". Nos dois casos não há o juízo negativo: não sabe jogar, não é fadista. Na igualmente elevada arte do verso há um juízo correspondente: "É poeta". É um juízo unívoco. Se vê de cara. A crítica literária em jornal foi substituída pela resenha, adulatória ou crítica. O leitor aprendeu a distinguir uma da outra. Por outro lado, uma norma desse gênero é que não se resenha livro de inimigo ou livro ruim. Dedos finos e mãos transparentes (RJ, 7 Letras, 119 páginas), segundo livro de Carlos Eduardo Cardoso, nem é de amigo meu e é muito bom. Nesse momento, as livrarias estão atulhadas de poesia, muitas só têm o mérito da força de expressão. Poesia pouca. Poesia, na conhecida fórmula de M. Jourdain, é P = Prosa + a + b + c, em que a é o metro, b é a ritma e c o ritual das imagens. E Prosa = Poesia - a - b - c. Isso não autoriza ninguém a sair escrevendo poesia. Por que? É que o segredo do negócio não está na estrutura formal, mas no significado que o poema adquire quando usado. Há sessenta anos, Ataulfo Alves compôs Covarde, sei que me podem chamar. Das várias maneiras de dizer isso, escolheu a mais improvável. É um verso camoneano. O estranhamento do verso é que, provavelmente, criou a confraria infinita e anônima dos curtidores de Covarde, sei que me podem chamar. Quem nada tem a significar ou não quer, ou não sabe, que se dedique com mais proveito a outro oficio. Quando um amigo diz: "Você escreve tão bem... " É mau sinal. Duas exceções a essa interdição: escrever poesia como terapia; ou para matar o tédio na prisão. Mas aí estamos fora da literatura. Poesia, como Carlos Eduardo Cardoso a pratica, é uma forma de desvinculação. Vinculação é uma essencialidade do homem, que sai de uma para entrar em outra. Talvez por isso nada se pareça mais à iluminação budista que a poesia. E talvez os melhores poetas (os da minha preferência) sejam aqueles que a usam para superar uma paixão — o vício/santidade, o crime/virtude, a perda/conquista de um grande amor, o nascimento/ morte e assim por diante. Uma amostra final de Dedos Finos e Mãos Transparentes: Misto de Isto e Aquilo    Misto de isto e aquilo, o homem é quase nada Soneto de três estrofes, Sombra que na luz boiava. Verso que leio, reverso. Essência dissimulada. Joel Rufino é professor aposentado da UFRJ. Historiador, escritor e doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ.
ÍTALO MORICONI À primeira vista este Sol descalço parece marcado por menor teor de organicidade que a obra anterior de Carlos Cardoso, Melancolia (Record, 2019),  A leitura atenta nos revela, porém, no miolo do livro, uma sequência de poemas fortemente articulados entre si. Ela incita o leitor a dividir a matéria do volume em três momentos. O momento inicial, introdutório, é formado pelos sete primeiros poemas do livro. Neles, o poeta apresenta sua poética, seu conceito de poesia, seu modo de vivê-la. Em seguida, temos a eloquente sequência que constitui o miolo do livro. Seu coração, seu núcleo. Ela vai de “Eu serei noite e serei dia” (p. XX) até “Eu sigo a esmo” (p. XX). Alguns dos poemas nessa sequência, eles próprios seriais, integram o que há de melhor no cenário da poesia contemporânea brasileira. Refiro-me a “Tudo é pequeno demais para caber nas asas dos anjos”, “Um corvo no caldeirão da morte”, “O caminho dos cavalos”, “Sagrada fosse a fome” e “Eu sigo a esmo”. Na visão deste que prefacia, sua força poética está na linguagem mais discursiva, nos versos mais longos que o prevalecente no restante da produção de Carlos, voltada para a depuração formal. Em poética, a lei da depuração reza: menos é mais. Elipse, lacuna, afasia. Afastamento da linguagem comum pela sintaxe e pelo sentido, não pelo vocabulário nem pelo registro discursivo.  No presente volume, a poética da depuração está presente nos poemas iniciais e nos finais. O contraste, aqui tão nítido, entre ela e uma poética da discursividade e do verso mais longo, mostra-se mais complexo e diverso. Tanto num quanto noutro existe uma riqueza mais dúctil de ritmos, a partir de um exercício de depuração consolidado que não mais teme ou se opõe a uma poética clássica do verso. *** Vejamos a sequência inicial de Sol descalço. O livro é colocado sob a égide da “pureza do sacrilégio” já no poema sem título de abertura: “que os dias acumulem-se// não na incerteza,/ mas na pureza do sacrilégio.” (p. XX). Temos aqui, portanto, reafirmada a proposta de uma poética do sacrilégio que se soma à da depuração. Ou seja, o discurso poético se apresenta como desafio ou provocação à norma religiosa. Extensivamente, a toda norma, desafiando amiúde as regras da regência gramatical. E há a enigmática pureza nesse sacrilégio. O que seria a pureza do sacrilégio, já que este, por definição, pertence à ordem do impuro? No prefácio que escreveu para o livro de 2017, Silviano Santiago apontava para o caráter de oxímoro da expressão criada por Carlos. Oxímoro: um termo se opondo frontalmente ao outro num mesmo enunciado — pureza, sacrilégio. Na leitura de Silviano, o oxímoro seria força semântica definidora do modo de operar a linguagem praticado por Carlos. O oxímoro, na sua convivência dramática de termos opostos, pressupõe sempre uma de quebra de expectativa. Ele é quebra de expectativa. Outro exemplo encontramos logo nas duas primeiras linhas do mesmo poema de abertura: “Que caia o amanhecer,/ o raiar do entardecer” (p. XX). O amanhecer cai como a tarde, a tarde raia como o amanhecer. A expectativa de sentido é desobedecida pela inversão. Quebras de expectativa são constantes de verso a verso e de estrofe a estrofe na poesia de Carlos Cardoso.  A decodificação da noção de pureza começa pelo que ela tem de análogo com as opções formais do poeta. Além de incidir sobre o verso, a depuração é depuração do sacrilégio. Afirmemos: em Sol descalço, o dado de pureza é o sacrilégio cometido antes de ser reconhecido como tal, similar ao pecado da criança que não sabe o que é pecado. A criança é imagem recorrente nos poemas deste livro, como em “Brincando” (p. XX): “o silêncio é minha arte/ e o criei assim, brincando.” (p. XX). Vemos que o poeta presta homenagem ao fundamento lúdico de certa ideia de poesia na modernidade. A ideia de que a raiz do poético é análoga ao olhar livre da criança, frente ao mundo e à linguagem.  Lemos, no mesmo poema: “talvez as palavras me fujam/ e eu me disfarce de criança,/ o silêncio é meu pecado/ e meu verso, a esperança.” (p. XX).  O poeta apenas se disfarça de criança. Finge ser o que deveras é? Mais à frente, ele se autoqualificará de “atrevido” (p. XX). A pureza é o sacrilégio disfarçado, entre o silêncio e o verso. Não se trata portanto do sacrilégio da blasfêmia e da ofensa e sim de um silêncio distanciado, de um afastamento, talvez involuntário, descompromissado do som e da fúria do mundo. Estamos longe da sátira. Estamos diante de uma ludicidade compenetrada, introspectiva, construída, mas não totalmente indisponível. Frente ao abismo da introspecção, o verso é tênue esperança, pela abertura via palavra. **** Na sequência de poemas formada por “Sussurros”, “Unha crescendo na carne”, “Poeira que ferve”, “É que o vento cresce à medida que o vento sopra” (p. XX-XX), a importância da palavra sobressai sobre a autodefinição do poeta. Em “Sussurros”, a palavra é “pingo no escuro” (p. XX), em “Unha crescendo na carne”, é “palavra qualquer contento” (p. XX), em “Poeira que ferve” é “Palavra ancorada no peito, / pássaros, pássaros” (p. XX). Finalmente, no poema “É que o vento...”, os versos talvez mais conhecidos de Carlos: “eu amo os poetas e a poesia porque são belos,/ e as coisas, porque são brutais” (p. XX). Não temos razão de duvidar que a poeira que ferve não seja a poeira cósmica e que o vento autoinsuflante não seja o vento do espírito. Ocorre, porém, que “há uma dor mineral em meu corpo” (um belo verso). Em torno do cosmo, do espírito e do corpo mineral desdobrar-se-á a poética de Carlos Cardoso. Pois é com esses dois poemas, o da poeira e o do vento, que o livro dá o salto para o que foi aqui chamado de “miolo” do volume (não no sentido do objeto físico livro, mas do texto em si, do conteúdo). O miolo que, se minha hipótese for correta, revela a motivação originária do talento poético de Carlos Cardoso. Motivação sacrílega, em aguda fricção e afastamento do discurso religioso. As referências se sucedem, totalmente desfocadas, deslocadas, descontextualizadas, mas não satirizadas nem achincalhadas, são ecos do religioso que fragmentariamente pontuam a palavra poética de Carlos Cardoso: “tenho uma outra face”, “o sermão de Maria”, “sobre o meu corpo/ repousa a ferida”, “flagelo”, “o fel e um córrego de leite”, “vermelho chão do inferno”, “redoma de fogo, objeto de Cristo/ cruz fincada no desespero”, “fábulas de chuva/ sob o grito dos anjos”, “o útero de Cristo” (aqui nos aproximamos da blasfêmia), “manto dominical,/ todos a comer e beber/ a semente da hipocrisia,/ Deus?/ E tudo é pequeno demais,/ “oh, Criador”,/ para caber nas asas dos anjos.” A partir da parte II do poema “Tudo é pequeno demais para caber nas asas dos anjos”, a referência cristã abre espaço a fugazes cenas pagãs (adoração do bezerro), embora termine com “do sangue/ das palavras crucificadas.” (p. XX). Na contracorrente da poética da depuração, emerge um eco de fervor apocalíptico que vai num crescendo até chegar ao belo poema “Um corvo no caldeirão da morte”, dedicado a nada mais nada menos que Dylan Thomas. O tom desse poema relativamente longo sobre a morte ecoa a fluidez eloquente da poesia do galês, o que verificamos também na primeira parte de “O caminho dos cavalos” e no poema “Eu sigo a esmo”. Do anjo, ao corvo, aos cavalos — estes por algum motivo me trazem a memória de Ivan Junqueira, o poeta da melancolia e dos embaldes embates da subjetividade. O presente prefaciador (apreciador) considera salutar no cenário intelectual da poesia brasileira a presença dessa poética atravessada pela exaltação de um pathos, certamente contido.              Abordar a morte é introduzir o tema do fim. Fim dos tempos, fim da vida, fim da herança paterna, fragmentação da palavra religiosa. Nesse plano, a poesia de Carlos Cardoso, de ideias que se fragmentam e imagens que se acumulam, tem por pano de fundo a indagação existencial, presente e ausente, presente na ausência. Tal inquietação vem com força total nos poemas “Sagrada fosse a fome” (p. XX) e “Eu sigo a esmo” (p.  XX). Em “Sagrada...” o Senhor (o pai, o Deus, a Lei) é que é qualificado — denunciado — de “sarcástico”. “Eu sigo a esmo” é um poema de redenção. ***             Para encerrar, vale a pena, depois do percurso, no fechamento do exemplar, voltar a seu título. O “sol descalço” me sugere qualidades da poesia de Carlos. A começar pelo despojamento, inclusive das sandálias da humildade, que no entanto estão presentes pelo tom menor e introspectivo adotado. Uma poesia que busca a transparência, a luz paradoxalmente cegante do sol, tendo por instrumento exploratório a valoração calma da densidade existencial das palavras.
Ítalo moriconi
A CONSCIÊNCIA SÍGNICA DE UMA POÉTICA Aguinaldo José Gonçalves O livro de poemas Na pureza do sacrilégio de Carlos Eduardo Cardoso, ilustrado com a arte singular de Lena Bergstein, realizado dentro da atmosfera desses tempos de contemporaneidade apresenta-se como uma espécie de fotografia artística dos meandros da poesia. O primeiro aspecto que destacaríamos nesse trabalho poético é que no seu conjunto ele denuncia um estilo que desvela uma visão que entendemos como fundamental para um trabalho artístico. No ir e vir dos poemas a alguns elementos que gostaríamos de destacar como invariantes no procedimento inventivo de Carlos Eduardo. O primeiro deles se revela na consciência do fazer poético em alguns dos textos em que o artista aponta o processo de realização com o próprio dedo, dentre eles, destacamos o primeiro poema do livro, “Frase Primeira” revela um procedimento de bricolagem ou do procedimento de bricolagem dentro de uma busca de recortes do material utilizado no poema e ao mesmo tempo do conteúdo do mundo a ser recortado para a composição do todo. Esse procedimento é retomado em outros poemas do livro em que a questão da invenção poética se manifesta de maneira arguta. Vale a pena atentarmos para as imagens e modo de construção e de modulação do poema “Corpo Vazio”. Leiamos o poema: Atrair o arvoredoe despi-lo d’alma, cortar as folhas e o caule bani-lo.  O tronco cortá-loAté atingir as raízes,  restar apenas o corpo, vazio. Nele o elemento determinante da construção poética se revela: esvaziamento lexical de partes dos referentes em busca de uma capitação do essencial, do intangível que consiste no elevado objetivo de um artística consciente. Em “Corpo Vazio” as metonímias se desvelam como procedimento desconstrutivo do que chamaríamos de Língua I para que se proceda à elevação a uma instancia superior, poética da Língua II. Nesse caminho temos ainda que destacar, dentre outros, o poema “O poeta e seu poema”: Vigas e paredes relutam em moldar-sehermética paisagem de pedra areia e cimento. Hipócrita o poeta xinga sintaxes, chutas as palavras,e crava estacas profundas na ânsia de tocar o intangível. Soberbo dele rende-se, dúbio e orgulhoso do nada.  No conjunto dos poemas que compõe o Na pureza do sacrilégio a maioria traz à baila algumas questões que são próprias da contemporaneidade no que diz respeito aos seus procedimentos que mesclam gêneros, assinalando estruturas narrativas e até mesmo o dialogo, questões semânticas urbanas as marcas de cidades invisíveis, mas ao mesmo tempo concretas para lembrar o grande narrador Italo Calvino. Os poemas em geral do livro trabalham questões de semantização truncados por um jeito de compor e de olhar para o mundo que ao mesmo tempo olha o poeta e o ilumina agora lembrando as iluminações de Georges Didi-Huberman e mesmo em alguns grandes poemas de Carlos Drummond de Andrade presentes em a A Rosa do Povo. Convidados especiais elevam a obra e acentuam a visão do artista, pensamos aqui na dedicatória a Antonio Cícero num dos poemas do livro. E essas posições acima levantadas são catalisadas dentro de alguns núcleos metalinguísticos do livro como é o caso do poema “O poeta e seu poema” acima transcrito. Nele alguns procedimentos já comentado voltam a se manifestar de maneira expressiva atingindo a excelência poética. Os processos de composição, realização e motivação se amalgamam conseguindo apreender nas imagens os polos decisivos do ato de invenção do poema. Carlos Eduardo Cardoso como se articulasse paradigmaticamente as pilastras necessárias para que um poema seja um poema recupera de maneira profunda as artimanhas da bricolagem no seu sentido estrito dentro das considerações de Claude Lévi-Strauss. O objetivo artístico composto por “pedaços”, “filamentos”, “nuanças sintáticas” e “blocos semânticos” como se fora uma material de construção com visibilidade de seus núcleos e de seus movimentos morfossintáticos. Há passagens que apontam mesmo que inconscientemente, indicam pontos de integração entre a tradição e a modernidade por meio de signos incontestavelmente pertinentes. Nesse poema, a palavra hipócritas remete ao leitor de poesia ao mestre da modernidade Charles Baudelaire no seu ontológico poema “Ao Leitor” que abre o livro Flores do Mal e ao mesmo tempo traz como marca da verticalidade contemporânea com as vociferações brutas ao verso e a sintaxe tradicionais. O poema se encerra com a palavra “nada” que mais uma vez no remete ao esvaziamento lexical herdado do simbolismo Frances e da poesia moderna do século XX. Esses elementos nos fazem crer que um novo POETA se insere na poesia brasileira adentrando o espaço poético pelo portão principal.
Fotos: Nana Moraes
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PAULO WERNECK É muito interessante para um jornalista especializado em livros, como eu, observar o surgimento de um novo poeta. Não é todo dia que isso acontece e não é todo dia que isso acontece como está acontecendo com Carlos Cardoso, que é um cara que ganhou já em seu terceiro livro o apoio de dois críticos importantes, que são o Antonio Cicero e o Silviano Santiago. Eu acho que o Carlos Cardoso trabalha numa linha muito pessoal; ele tem uma poesia singular, uma poesia que se destaca daquela que está sendo produzida no Brasil hoje; tem um tom diferente, tem uma preocupação diferente, tem um substrato diferente de onde ele vai buscar as suas imagens, a sua poética, e isso interessa muito. É o surgimento de uma nova paisagem poética no país! Não é todo dia que vemos surgir um poeta com essa força, um poeta que tem esse respaldo crítico e por isso eu estou aqui para observar o caminho do Carlos Cardoso na poesia brasileira. Salta aos olhos neste livro do Carlos Cardoso, Na Pureza do Sacrilégio, a construção muito meditada que ele faz desse livro: não só a construção dos poemas, a estrutura do livro, mas também a construção dos versos me parece algo que tem um racionalismo forte, por isso talvez evoque a poesia de João Cabral de Melo Neto, como já foi mencionado no debate e também pelo texto do Silviano Santiago. Esse diálogo com a arte que ele faz especificamente com a Lena Bergstein, em que os poemas provocam ilustrações, provocam pinturas, obras de arte, e que passam a integrar a estrutura poética do livro é interessante; é também algo que dialoga, de maneira mais enviesada, com o João Cabral de Melo Neto, que era um poeta muito preocupado com as artes plásticas e que tinha também a preocupação de produzir edições artesanais com obras de artistas amigos. É uma conversa rara que na poesia brasileira não é todo dia também que acontece. Seria injusto com o Carlos Cardoso ou com o Fernando Pessoa fazer essa comparação, esse paralelo tão forte porque o que eu vejo no Carlos Cardoso são duas coisas: tem um ímpeto de singularidade, um desejo de ter uma voz original – e ele tem – do ponto de vista em que ele não está reproduzindo uma poética que a gente vê na poesia contemporânea. Ele adota uma voz muito singular e, ao mesmo tempo, essa voz dialoga com a tradição, dialoga com a poesia que ele leu na vida inteira e dialoga até de maneira inesperada por ele mesmo e que, por isso, nos traz sugestões. Eu acho que ele tem esse pêndulo entre uma voz muito singular na poesia contemporânea e um diálogo com a tradição que, por vezes, é consciente, por vezes, é inconsciente e que cabe a nós, jornalistas, críticos, desnudar – para usar outra imagem que o Carlos Cardoso utiliza bastante nos poemas dele.”
MANUEL DA COSTA PINTO Eu conheci Carlos Cardoso a partir do convite que eu recebi para fazer a mesa do lançamento do livro Na Pureza do Sacrilégio, e foi uma grata surpresa conhecer um pouco dos bastidores da criação literária, saber o processo que levou ao livro que eu já havia lido previamente; então foi muito interessante ver a todas as nuances de significado, todas as experiências que se decantaram na página impressa e que não estão no livro, mas que enriquecem também a leitura do livro. É um livro que, na minha leitura, tem três partes, embora não esteja dividido assim, você tem uma lenta transição de uma parte para outra, de uma primeira para uma segunda parte, de um olhar mais lírico para um olhar mais objetivo e mais hermético até atingir uma síntese que faz do livro um conjunto de poemas que dialogam entre si. Tem uma espécie de linha narrativa que conduz a um olhar de indignação diante do mundo e tentativa de reconciliação com o mundo a partir de uma visada, de uma perspectiva que é questionadora, mas ao mesmo tempo tentando superar as contradições. A introdução ao livro feita pelo grande escritor e crítico literário Silviano Santiago faz algumas aproximações a grandes nomes da poesia em língua portuguesa, como João Cabral de Melo Neto e Fernando Pessoa. Acho que a gente tem vários poemas que são ‘cabralinos’: ‘Cães’ por exemplo, é um poema cabralino; ‘Faca Cega’ também é um poema que tem uma objetividade meio pontiaguda, meio cheio de arestas e um andamento muito econômico, rápido, direto, com uma batida seca; tem uma secura que é própria do objeto que está tratando o poema. Mas por outro lado existe uma coisa meio imagética, sensacionista, que eu acho que para mim soa mais próximo do Fernando Pessoa. Acho que se eu tivesse que colocar em proximidade o Carlos Cardoso de algum poeta da língua portuguesa dentre aqueles evocados pelo Silviano Santiago, seria ao Fernando Pessoa, sendo que o Fernando Pessoa são vários poetas, o Fernando Pessoa é várias pessoas porque ele tinha os heterônimos. Então, eu acho que tem os poemas sensacionistas do Álvaro de Campos, tem algo de uma linguagem, às vezes, hermética, difícil, um pouco quase que alucinada, que eu enxergo, que eu leio reverberando na poesia do Carlos Cardoso. É um poeta bastante singular, autônomo em si, com uma obra bastante autônoma. Você pode identificar aqui e ali semelhanças com João Cabral de Melo Neto, com Fernando Pessoa ou com Cecília Meireles que é uma autora que o Silviano Santiago não menciona, mas que eu aproximaria do Carlos Cardoso. Você pode encontrar aqui e ali intersecções, pontos de contato, mas a obra de um poeta quando ele já criou uma dicção própria ela é independente, ela é autônoma dessas referências que, no entanto, estão ali.
silviano santiago
SILVIANO SANTIAGO A nova coleção de poemas de Carlos Cardoso se anuncia por um oximoro – Na Pureza do Sacrilégio –, figura de retórica que resplandece iluminada pelo belo desenho da artista plástica Lena Bergstein. De imediato, o leitor futuro do livro é alertado pra o ensaio clássico de Roman Jakobson sobre o poema ‘Ulisses’, de Fernando Pessoa. Seu verso inicial é belo e definitivo exemplo de oximoro: ‘O mito é o nada que é tudo’. O oximoro pessoano voltou a significar na capa do novo livro de Carlos Cardoso: a virtude daquilo que não tem malícia nem pecado, a pureza, se combina à maldade e à profanação, o sacrilégio. Mas de que modo – em poesia – o mero jogo entre termos opostos pode reforçar a expressão? Há que dar um salto da retórica da linguagem para a análise do modo como o uso do oximoro se expressa na arte poética e a valoriza, tendo como exemplos Fernando Pessoa e Carlos Cardoso. Deparamo-nos com a epígrafe tomada ao poeta mexicano Octavio Paz. Serve para alertar o leitor das intenções do poeta brasileiro. Paz nos diz que, na criação, a palavra não serve para vestir de modo luxuoso e luxurioso. O uso abusivo das figuras de retórica parece ser um contrassenso na escrita poética defendida por Octávio Paz e – acrescento – por Carlos Cardoso. Na criação, a palavra não veste, ela desnuda – afirma o mexicano e o brasileiro reafirma. Ainda não sendo, a palavra mostra que é pelo desnudamento, pelo signo da coisa, e não pelo vestir, revestir, adornar, enfeitar a coisa. Se o mito é o nada que é tudo, o poema é a pureza do sacrilégio. A escrita poética desnuda a pureza pelo sacrilégio para purifica-la ainda mais; desnuda o sacrilégio pela pureza para conspurca-lo ainda mais. Extremos extremados aparentemente não se tocam e se tocam em confusão, em simbiose poética. O deslizamento do formal ao semântico e do semântico ao formal não é apenas uma das graças do notável poema de Fernando Pessoa, como Jakobson demonstrou genialmente; é também o movimento que articula, em várias cadeias estruturantes, os sucessivos poemas de Carlos Cardoso. Como Pessoa nos poemas do livro Mensagem, Carlos é um “poeta da estruturação”, que abole todos os golpes da “incerteza”. A força do oximoro é tão potente no universo de Carlos Cardoso que o leitor pode se valer da figura de retórica como chave para uma compreensão global de todos os poemas de Na Pureza do Sacrilégio. No poema final da coleção os dias – isto é, as ocupações do poeta com a palavra – se acumulam entre a queda dos amanheceres e o raiar dos entardeceres, mas não se acumulam na incerteza do vaivém entre termos opostos. Acumulam-se no reforço da viagem cotidiana entre os amanheceres em queda e os entardeceres em brilho, que vêm previstos na capa pelo oximoro e são ratificados por Octavio Paz em termos de criação poética. Torna-se necessário configurar o espaço em que os poemas são escritos e inscritos, já que o oximoro Na Pureza do Sacrilégio denota como limitada, intervalar e crepuscular a área da criação poética para Carlos Cardoso. Os poemas circulam todos no intervalo aberto entre termos extremos. São contextualizados de modo formal e reforçados de modo semântico por um termo e pelo seu oposto e contraditório. Dessa maneira, constituem um espaço original de produção poética onde os temas favoritos do poeta são repassados no seu interior, isto é, dentro dum edifício arquitetônico onde alicerce e cumeeira não se movem e as paredes, se se encontrarem, são poesia. Arquitetonicamente falando, tudo é insistentemente fixo para que a movimentação interna seja plena. Em viagem de ida e volta, movem-se os temas, sempre (de)limitados pela organização e a arquitetura do oximoro. O poema perambula, mas tudo permanece intacto – eis a lição de poesia. A principal qualidade da retórica de Carlos – insisto – é o desnudamento. Na verdade, verso algum de poema que desnuda é inteiro. O poeta toma uma árvore no campo, como se pudesse toma-la com a facilidade como se toma uma palavra da língua portuguesa, como se toma um signo linguístico. Logo se desilude, porque tem de trabalhar o poema entre oximoros, entre o real e sua representação, tem necessariamente de despir o arvoredo d’alma, tem em seguida de cortar as folhas, banir o caule, cortar o tronco até atingir as raízes e então descobrir que resta de papel um corpo, no entanto vazio. Nos poemas de Carlos as sensações de fundo ético sempre aproximam a experiência de vida do sabor religioso. O quietismo é de praxe nas emoções previsíveis do poeta a ocupar o espaço intervalar. A pureza dos sentimentos – ou a sinceridade política na confissão do poeta entre oximoros – é sempre corrompida pelo ultraje da vida miserável. Seriam pessimistas os poemas intervalares, da fenda, em que vivem e se emocionam o poeta e seu leitor? Como é o “sentir o frio e o arrepio / que é estar”? A denúncia social tomou conta do espaço subjetivo, poético intervalar e quer “farejar o absurdo na calçada do abismo”, enquanto – já na clave do sagrado onde o sacrilégio do viver, do estar, passou a corromper a pureza do escrever – “o ódio / esculpido em flor imóvel / deixa queimar o focinho do porco”. No sortilégio da pureza – se me permitem a inversão nos termos ao final desta apresentação – o oximoro passa a residir num “pavilhão imaginário / a fatiar a carne em espírito”. Nele mora, por sua vez, “Homens / mulheres a implorarem perdão”.
Camaleão
[AUDIO BOOK] 42 poemas do livro Na Pureza do Sacrilégio recitados pelo autor. Faixa bônus: “Engenheiro-poeta”. Ouça a faixa 15:  Luz da Cidade, 2017 Coleção Poesia Falada Vol. 23
www.luzdacidade.com.br
carlos cardoso eu serei noite e serei dia 
carlos cardoso camaleão
 carlos cardoso transbordar
carlos cardoso pedra
MELANCOLIA Destaque de sua geração, Carlos Cardoso é considerado o representante de uma nova poética no país. Seu novo livro chega com capa do renomado artista visual Carlos Vergara, em uma atmosfera em que a poesia e a imagem conversam, uma característica do poeta.   O livro traz orelha assinada por Heloisa Buarque de Hollanda e apresentação de Antonio Carlos Secchin, que aponta com precisão: “Num só verso o universo se condensa, e cabe à poesia ritualizar perpetuamente a encenação de um mundo sem origem e sem fim. É o que faz, com talento e consistência, Carlos Cardoso, em Melancolia.”    Sem dúvida, Melancolia é um livro forte, que apresenta ao leitor muitos motivos para refletir.   Rio de Janeiro: Editora Record, 2019
marco lucchesi
O QUE RESTA Antônio Carlos Secchin Melancolia, de Carlos Cardoso, reafirma, para além da originalidade de uma poesia saudada, entre outros, por Silviano Santiago e Antonio Cicero (in: Na pureza do sacrilégio, 2017), a vocação nômade de uma palavra simultaneamente atenta ao que escapa e ao que se condensa. A matéria em expansão na vida vegetal e animal — em floragem, nas suaves folhas secas, no canto dos sapos — contraposta à condensação e a contenção da matéria mineral, sobretudo nas pedras estrategicamente situadas em várias partes do livro. Ainda que, na incessante dissolução de previsibilidades, tenhamos, com frequência, uma pedra em movimento e em metamorfose. Também numa sutil composição, a “Melancolia” que nomeia a obra não se oferta de início: emerge no poema 2, melancolia assim oculta pela “Floragem” que graficamente a encobre na folha anterior. A palavra-título se dissemina ao longo do livro, retornando ainda na penúltima página do derradeiro poema da coletânea. As relações deceptivas com o real constituem uma das tônicas da obra. Sucessão de pequenos desencontros, de paisagens mal percebidas, da consciência de perdas — tudo isso, de modo personalíssimo, vazado num “tom menor”, baixossonante, em que a palavra pura, e não o combustível da raiva, parece alimentar a força do poeta: Rasgo meu destino e o trago sem revolta retiro do bolso minha arma uma folha de papel e uma caneta, não há pólvora!  O destino, portanto, é o que perdura como fragmento de um projeto (rasgado, o poeta o traz) e, ao mesmo tempo, aquilo que, de qualquer modo, não pode ser abandonado: embora rasgado, ele o traga, incorpora. O veio metalinguístico, bastante ostensivo nessa e em outras peças do volume, elabora uma espécie de poética da negatividade, em que mais se destacam os limites do que o alcance dos signos, cerceados, mas imantados pela miragem de um além inominável. Para esse livro não escreverei o que é fácil de entender o que é fácil de ler  *** o ilimitável me conduz nessa terra vasta de luz pouca  *** Retiro das palavras o que não foi dito  Esse não dizer das palavras é o horizonte a que aspira o poeta. Não o silêncio prévio ao dizer, e sim o silêncio para além do que pôde ser dito, e que resiste como núcleo infranqueável e impermeável à verbalização. Heloisa Buarque de Hollanda destaca em Cardoso a poesia como técnica de sobrevivência. O poeta é o que permanece “incansavelmente acordado”, ainda que seja para contemplar o vazio. A parede-poema que o sustenta se ergue “de tijolos maciços/ com maçarico, / argila, cuspe, / e minhas próprias mãos”. Nesses versos, há uma confissão de que a matéria exterior e a íntima amalgamam-se num só corpo, e é em tal fusão que se perfaz a poesia: “Este livro sou eu.” Num desdobramento radical de famoso verso de Paul Valéry, “Os acontecimentos me aborrecem” (“Les événements m’ ennuient”), Carlos abraça o viés do desacontecimento: a carga da matéria explicitamente referencial, geográfica, histórica, de seu discurso é tênue (surgem, aqui e ali, referências à cidade do Rio de Janeiro). Contra a crueza realista do dado empírico, lá estão “meus pensamentos/ a delirarem nas nuvens”. Daí, talvez — alçada às nuvens — a sensação constante de que algo não se materializa, evanesce, não se deixa tocar: desacontece. Há, todavia, gradações no tom “melancólico” do livro, no que tange à estratégia comunicativa dos poemas, num arco que engloba tanto peças bastante cifradas quanto outras, alocadas em maioria no final do conjunto, em que aflora um discurso de maior transparência, a exemplo de “Poeminha”, não por acaso dedicado a Vinicius de Moraes: Minha menina é tão bonita canta feito passarinho me acorda cedo ao dia me abraça ao deitar à noite é mais ágil que o vento tão cheirosa feito as flores sabe o que está em meu pensamento sabe de todos meus desamores “O passado é mais hoje que o presente.” Sim, como afirmava verso do anterior Na pureza do sacrilégio, “A memória é uma porta de escape”. Carlos Cardoso agora a transpõe, para urdir o irresistível encontro da memória com a imaginação, cristalizando esse outro modo de falar que se chama poesia. Se os “deuses são metáforas”, o verbo poético contém e estampa a centelha divinamente humana que forja o ofício do poeta. Em diálogo implícito com o Drummond de “Tudo é teu, que enuncias”, declara Carlos Cardoso: “Essa paisagem me pertence, / mar, árvores, ferrugens, aves” — todas as modalidades da matéria, mineral, vegetal, animal. Num só verso o universo se condensa, e cabe à poesia ritualizar perpetuamente a encenação de um mundo sem origem e sem fim. É o que faz, com talento e consistência, Carlos Cardoso, em Melancolia.
heloisa buarque de holanda
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA Intuo que a poesia de Carlos Cardoso é, antes de mais nada, uma técnica de sobrevivência. Sua ligação visceral com a escrita permeia a sua vida. Carlos Cardoso se comunica através da poesia, sobrevive através da poesia. Essa necessidade fez nascer um poeta de ofício. Fiquei atenta. E, assim, comecei a ler Melancolia. Iniciei a leitura pronta para um mergulho num universo poético marcado por tristezas vagas, profundas, resistentes. Mas não achei traços nem as sonoridades melancólicas que previra e, de certa forma, esperava. Começo pelo poema que dá nome ao livro e me surpreendo lendo:  “retiro do bolso minha arma/ uma folha de papel/ e uma caneta,/ não há pólvora!”. Sem pólvora, sem sentimentos de desalento, a melancolia se revela palavra.  Apenas palavra. A palavra escrita, fluida, buscada, necessária. Palavra que procura se desvencilhar das armadilhas da própria poesia. E avança: “Melancolia,/ a palavra/ resume esse livro/ que levo à vida/ e o solto no mundo/ de todos que o alcançarem”. A poesia de Carlos Cardoso é vital. Se expõe como recurso de vida, de respiração.  Uma poesia que não se oculta e busca a palavra direta, íntegra, pura. Confessa o poeta: “onde chegar/ não saberei/ o ilimitável me conduz/ nessa terra vasta de luz pouca/ vou remar com palavras simples/ com o sangue no céu da boca”. Não é certamente por acaso que, ao longo de seus livros, o poeta vem seguindo  o locus exato onde surge a palavra. Um livro belo, que mostra o poeta, em voo solo,  em busca do ponto preciso no qual a melancolia se descobre palavra.
UM HÁLITO AUDAZ DESDE UM SUL LONGÍNQUO Rumen Stoyanov Os vínculos literários búlgaro-brasileiros têm sua exata data de nascimento: 17/04/1915. Naquele dia no Rio de Janeiro saiu um número da famosa revista humorística Careta. Ela contém o conto “Аssociação de Temperança”, da coletânea Tio Ganio de Aleko Konstantinov. Falta nome de tradutor e de qual língua foi feita a versão daquele pioneiro que nos surpreende agradavelmente. Perguntei na Casa Museu do Felizardo, em Svistov, se existe uma tradução francesa anterior à brasileira, no começo do século o idioma internacional aqui e no País do Café era o francȇs, e por isso supunha que a obra tivesse passado pela pátria de Balzac. A reposta foi negativa e considero que a passagem fosse feita diretamente do original. Mas quem teria dado aquele passo inicial, certo pela escolha do autor, provavelmente continuará sendo um enigma, a não ser que um acaso misericordioso o revelasse. Mais importante é saber que com aquela “Аssociação” subtropical começa nossa presença literária no Gigante do Trópico, na lusofonia (oito países), mas também na América Latina: 17/04/1915. Considerando a distância total (geográfica, histórica, cultural, política, econômica) entre a Bulgária e o Brasil, há de se dizer que aquele evento de abril aconteceu assombrosamente cedo. E que prenuncia uma colaboração bilateral literária particularmente valiosa, pois o Brasil é o quinto país quanto a território e população, portanto é bom, é uma alegria saber que os livros búlgaros lá são já mais de 140. Um fato que levanta uma admiração: os livros brasileiros entre nós são menos, apenas uns quantos, mas de todos modos menos: um caso raro em tais relações nossas, nas quais predomina o elemento estrangeiro. Para se ter uma ideia mais ampla a respeito do campo literário búlgaro-brasileiro, o qual ganha para nós uma revelância devida á crescente importância do País Continente, trago mais pontos de referência. Em 1859 o Jornal de Constantinopla publica em 18 números “A imigração ao Brasil”, novela de autor alemão não indicado, traduzida por Mikhail Zafirov e Iossif Dainelov (parente meu), provavelmente com título mudado. Ela é nosso contato inicial, mesmo indireto, com uma realidade, inacessível para nós naquela altura. Ou seja, nossa brasilística surge em 1859. O primeiro livro brasileiro entre nós é do ano 1938: Dona Paula, contos de Machado de Assis e Arthur Azevedo. E o primeiro livro nosso lá é o romance Nora de Gueorgui Karaslavov: 1964. Porém vou falar de poesia. Еm 1962 o jornal Literaturen front, semanário da União dos Escritores Búlgaros, apresenta dois poemas, de Drummond de Andrade e Ribeiro Couto. Junto, um artigo de Caetano da Silva sobre a poesia brasilera. É a primeira manifestação dela entre nós. O 1977 deixa o primeiro poemário brasileiro aqui: Sentimento do mundo, versão em espanhol por Alexander Muratov e Atanas Daltchev. Mas devo informar que jornais, revistas, suplemenetos, antologias, coletâneas têm uma contribuição palpável para a divulgação daquela poesia latinoamericana. Eis uma informação brevíssima dos livros que nos interessam aqui: 1977: Sentimento do mundo, Drummond, tradução Muratov e Daltchev. 1996: Solo para quinze vozes, quinze autores, trad. Rumen Stoyanov. 1999: Na sombra das horas, Márcio Catunda, edição bilingue, trad. Stoyanov. 1999: Lua crescente, Catunda, em português, com disco, Stefka Onikian canta os versos. 2005: Lugares imaginários, Gilberto Mendonça Teles, trad. Antonia Peeva. 2006: Poesia brasileira contemporânea, doze poetas, bilíngue, trad. Stoyanov. 2009: Elegia de Varna, Anderson Braga Horta, bil., trad. Stoyanov. 2012: Poesia, Drummond, bil., trad. Stoyanov. 2012: Poesia do Nordeste, Dimas Macedo, Francisco Carvalho, bil., trad. Stoyanov. 2014: Árvores tristes, Rosalvo Acioli, bil., trad. Stoyanov. nov. 2015: Impressões, Vera Lopes, bil., trad. Stoyanov. Em todas as partes a poesia é lida menos em comparação com a prosa, de maneira que as mencionadas treze seleções estão, como número, completamente dentro do habitual. E agora vou dizer sobre Na pureza do sacrilégio e mais concretamente de Carlos Cardoso. Explicar num prefácio justamente o que o amável leitor está por conhecer seria impor-lhe meu gosto artístico individual, minhas concepções, valorações. Um procedimento assim seria menosprezar quem lê poesia, equivalente com uma declaração soberba de que você não chegou a crescer para assimilar por sua conta poemas e por isso sou eu quem levarei você pela mãozinha para eles, você escute com atenção como eu os interpreto. É como se eu te convencesse quão conveniente para você é namorar-se, descrevendo-te as belezas e dignidades de alguém. O verdadeiro amor não precisa de reforços. Além disto: a poesia é descobrimento. É por isso que deixo o leitor que decubra por sua conta a de Cardoso, acredito, que se ele gostar dela isto será sem minha interpretação, orientação, se não, mesmo baixar eu as estrelas, seria inútil. São realmente insondáveis os desígnios de Deus (para os que não acreditam, da vida): quem iria supor que um engenheiro, e não um filólogo diplomado, que estudara literaturas, fonética, morfologia, sintaxe, folclore, estilística etc., viria destacar forte em meio de sua geração poética. Carlos Cardoso nasceu em 1973 no Rio de Janeiro e seu primeiro poemário sai já tendo ele mais de trinta anos: Sol descalço (2004), uma manifestação nada rápida nos tempos acelerados do presente. Após um ano aparece Dedos finos e mãos transparentes e do último, Na pureza do sacrilégio (2017) o separa uma pausa impressionante de doze anos. Porém seus poemas já foram publicados em Portugal, Espanha, França, México e outros. O que nos traz este decimoquarto poemário brasileiro? 1. Cardoso é o poeta brasileiro mais jovem com um livro pessoal em búlgaro. Sua pátria representa sem exagero algum um país continente: seus mais de 8 500 00 quilômetros quadrados superam com mais de 800 000 a Austrália, que é um continente. E parece que há uma dependência entre esta infinidade e as procuras correspondentes, polidirecionais, contraditórias, com frequência, totalmente opostas, inclusive negando-se com fúria, na poesia, incluindo desde formas tradicionais como o soneto até extremos que nós nunca iniciamos e nem concebemos. A propósito, o Brasil orgulha-se da maior biodiversidade do mundo e esta distinção sua dir-se-ia que está igualmente na poesia: nela há de tudo. 2. Cardoso evidencia uma parte poética nova para nós, da sua terra: antes de Na Pureza do Sacrilégio aqui vinham manifestações bastante sóbrias, tradicionalmente moderadas. Ele utiliza maiúsculas, signos de pontuação não conforme o habitual e eu respeitei esta peculiaridade como parte de suas diferenças. Aos leitores desejo uma agradável vivência neste primeiro encontro com a poesia de Carlos Cardoso.
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Melancolia, de Carlos Cardoso Letras In.Verso e Re.Verso – 26.09.2019
Na pureza do sacrilégio, de Carlos Cardoso Letras In.Verso e Re.Verso – 16.08.2018
Carlos Cardoso observa a própria melancolia em poema inédito Folha de S.Paulo: Ilustríssima – 16.12.2018
"Na Pureza do Sacrilégio” Valor econômico – 18.05.2018
Livros: lançamentos Jornal do comércio – 27.04.2018
Carlos Cardoso volta à poesia com "Na Pureza do Sacrilégio"O Povo – 02.05.2018
Dans la pureté du sacrilège, par Carlos Cardoso D-fiction – 25.06.2018
depoimento de carlos andreazza
depoimento de carlos Cardoso
carlos vergara sobre o livro Melancolia
depoimento de italo moriconi
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http://d-fiction.fr/2018/06/dans-la-purete-du-sacrilege/
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APRESENTAÇÃO  À primeira vista este Sol descalço parece marcado por menor teor de organicidade que a obra anterior de Carlos Cardoso, Melancolia (Record, 2019),  A leitura atenta nos revela, porém, no miolo do livro, uma sequência de poemas fortemente articulados entre si. Ela incita o leitor a dividir a matéria do volume em três momentos. O momento inicial, introdutório, é formado pelos sete primeiros poemas do livro. Neles, o poeta apresenta sua poética, seu conceito de poesia, seu modo de vivê-la. Em seguida, temos a eloquente sequência que constitui o miolo do livro. Seu coração, seu núcleo. Ela vai de “Eu serei noite e serei dia” (p. XX) até “Eu sigo a esmo” (p. XX). Alguns dos poemas nessa sequência, eles próprios seriais, integram o que há de melhor no cenário da poesia contemporânea brasileira. Refiro-me a “Tudo é pequeno demais para caber nas asas dos anjos”, “Um corvo no caldeirão da morte”, “O caminho dos cavalos”, “Sagrada fosse a fome” e “Eu sigo a esmo”. Na visão deste que prefacia, sua força poética está na linguagem mais discursiva, nos versos mais longos que o prevalecente no restante da produção de Carlos, voltada para a depuração formal. Em poética, a lei da depuração reza: menos é mais. Elipse, lacuna, afasia. Afastamento da linguagem comum pela sintaxe e pelo sentido, não pelo vocabulário nem pelo registro discursivo.  No presente volume, a poética da depuração está presente nos poemas iniciais e nos finais. O contraste, aqui tão nítido, entre ela e uma poética da discursividade e do verso mais longo, mostra-se mais complexo e diverso. Tanto num quanto noutro existe uma riqueza mais dúctil de ritmos, a partir de um exercício de depuração consolidado que não mais teme ou se opõe a uma poética clássica do verso. *** Vejamos a sequência inicial de Sol descalço. O livro é colocado sob a égide da “pureza do sacrilégio” já no poema sem título de abertura: “que os dias acumulem-se// não na incerteza,/ mas na pureza do sacrilégio.” (p. XX). Temos aqui, portanto, reafirmada a proposta de uma poética do sacrilégio que se soma à da depuração. Ou seja, o discurso poético se apresenta como desafio ou provocação à norma religiosa. Extensivamente, a toda norma, desafiando amiúde as regras da regência gramatical. E há a enigmática pureza nesse sacrilégio. O que seria a pureza do sacrilégio, já que este, por definição, pertence à ordem do impuro? No prefácio que escreveu para o livro de 2017, Silviano Santiago apontava para o caráter de oxímoro da expressão criada por Carlos. Oxímoro: um termo se opondo frontalmente ao outro num mesmo enunciado — pureza, sacrilégio. Na leitura de Silviano, o oxímoro seria força semântica definidora do modo de operar a linguagem praticado por Carlos. O oxímoro, na sua convivência dramática de termos opostos, pressupõe sempre uma de quebra de expectativa. Ele é quebra de expectativa. Outro exemplo encontramos logo nas duas primeiras linhas do mesmo poema de abertura: “Que caia o amanhecer,/ o raiar do entardecer” (p. XX). O amanhecer cai como a tarde, a tarde raia como o amanhecer. A expectativa de sentido é desobedecida pela inversão. Quebras de expectativa são constantes de verso a verso e de estrofe a estrofe na poesia de Carlos Cardoso.  A decodificação da noção de pureza começa pelo que ela tem de análogo com as opções formais do poeta. Além de incidir sobre o verso, a depuração é depuração do sacrilégio. Afirmemos: em Sol descalço, o dado de pureza é o sacrilégio cometido antes de ser reconhecido como tal, similar ao pecado da criança que não sabe o que é pecado. A criança é imagem recorrente nos poemas deste livro, como em “Brincando” (p. XX): “o silêncio é minha arte/ e o criei assim, brincando.” (p. XX). Vemos que o poeta presta homenagem ao fundamento lúdico de certa ideia de poesia na modernidade. A ideia de que a raiz do poético é análoga ao olhar livre da criança, frente ao mundo e à linguagem.  Lemos, no mesmo poema: “talvez as palavras me fujam/ e eu me disfarce de criança,/ o silêncio é meu pecado/ e meu verso, a esperança.” (p. XX).  O poeta apenas se disfarça de criança. Finge ser o que deveras é? Mais à frente, ele se autoqualificará de “atrevido” (p. XX). A pureza é o sacrilégio disfarçado, entre o silêncio e o verso. Não se trata portanto do sacrilégio da blasfêmia e da ofensa e sim de um silêncio distanciado, de um afastamento, talvez involuntário, descompromissado do som e da fúria do mundo. Estamos longe da sátira. Estamos diante de uma ludicidade compenetrada, introspectiva, construída, mas não totalmente indisponível. Frente ao abismo da introspecção, o verso é tênue esperança, pela abertura via palavra. **** Na sequência de poemas formada por “Sussurros”, “Unha crescendo na carne”, “Poeira que ferve”, “É que o vento cresce à medida que o vento sopra” (p. XX-XX), a importância da palavra sobressai sobre a autodefinição do poeta. Em “Sussurros”, a palavra é “pingo no escuro” (p. XX), em “Unha crescendo na carne”, é “palavra qualquer contento” (p. XX), em “Poeira que ferve” é “Palavra ancorada no peito, / pássaros, pássaros” (p. XX). Finalmente, no poema “É que o vento...”, os versos talvez mais conhecidos de Carlos: “eu amo os poetas e a poesia porque são belos,/ e as coisas, porque são brutais” (p. XX). Não temos razão de duvidar que a poeira que ferve não seja a poeira cósmica e que o vento autoinsuflante não seja o vento do espírito. Ocorre, porém, que “há uma dor mineral em meu corpo” (um belo verso). Em torno do cosmo, do espírito e do corpo mineral desdobrar-se-á a poética de Carlos Cardoso. Pois é com esses dois poemas, o da poeira e o do vento, que o livro dá o salto para o que foi aqui chamado de “miolo” do volume (não no sentido do objeto físico livro, mas do texto em si, do conteúdo). O miolo que, se minha hipótese for correta, revela a motivação originária do talento poético de Carlos Cardoso. Motivação sacrílega, em aguda fricção e afastamento do discurso religioso. As referências se sucedem, totalmente desfocadas, deslocadas, descontextualizadas, mas não satirizadas nem achincalhadas, são ecos do religioso que fragmentariamente pontuam a palavra poética de Carlos Cardoso: “tenho uma outra face”, “o sermão de Maria”, “sobre o meu corpo/ repousa a ferida”, “flagelo”, “o fel e um córrego de leite”, “vermelho chão do inferno”, “redoma de fogo, objeto de Cristo/ cruz fincada no desespero”, “fábulas de chuva/ sob o grito dos anjos”, “o útero de Cristo” (aqui nos aproximamos da blasfêmia), “manto dominical,/ todos a comer e beber/ a semente da hipocrisia,/ Deus?/ E tudo é pequeno demais,/ “oh, Criador”,/ para caber nas asas dos anjos.” A partir da parte II do poema “Tudo é pequeno demais para caber nas asas dos anjos”, a referência cristã abre espaço a fugazes cenas pagãs (adoração do bezerro), embora termine com “do sangue/ das palavras crucificadas.” (p. XX). Na contracorrente da poética da depuração, emerge um eco de fervor apocalíptico que vai num crescendo até chegar ao belo poema “Um corvo no caldeirão da morte”, dedicado a nada mais nada menos que Dylan Thomas. O tom desse poema relativamente longo sobre a morte ecoa a fluidez eloquente da poesia do galês, o que verificamos também na primeira parte de “O caminho dos cavalos” e no poema “Eu sigo a esmo”. Do anjo, ao corvo, aos cavalos — estes por algum motivo me trazem a memória de Ivan Junqueira, o poeta da melancolia e dos embaldes embates da subjetividade. O presente prefaciador (apreciador) considera salutar no cenário intelectual da poesia brasileira a presença dessa poética atravessada pela exaltação de um pathos, certamente contido.              Abordar a morte é introduzir o tema do fim. Fim dos tempos, fim da vida, fim da herança paterna, fragmentação da palavra religiosa. Nesse plano, a poesia de Carlos Cardoso, de ideias que se fragmentam e imagens que se acumulam, tem por pano de fundo a indagação existencial, presente e ausente, presente na ausência. Tal inquietação vem com força total nos poemas “Sagrada fosse a fome” (p. XX) e “Eu sigo a esmo” (p.  XX). Em “Sagrada...” o Senhor (o pai, o Deus, a Lei) é que é qualificado — denunciado — de “sarcástico”. “Eu sigo a esmo” é um poema de redenção. ***             Para encerrar, vale a pena, depois do percurso, no fechamento do exemplar, voltar a seu título. O “sol descalço” me sugere qualidades da poesia de Carlos. A começar pelo despojamento, inclusive das sandálias da humildade, que no entanto estão presentes pelo tom menor e introspectivo adotado. Uma poesia que busca a transparência, a luz paradoxalmente cegante do sol, tendo por instrumento exploratório a valoração calma da densidade existencial das palavras.                                                                                         Italo Moriconi  
antonio cicero
MARCO LUCCHESI Carlos Cardoso é um poeta que procura auscultar suas modalidades sísmicas. Não abre mão de aproximações entre a literatura brasileira e a literatura mundial. Compreende como e quanto a poesia age e repousa no território do encontro e do diálogo. Seu livro conjuga leituras Drummond, Dylan Thomas para traduzir o mundo das coisas guardadas. Com seus ferimentos e sinais de redenção. Em feroz desacordo o dentro e o fora, do que está próximo e do que vai distante, da passagem complexa do sonho para a realidade e a transfiguração, no caminho inverso, que segue da realidade para o sonho. Carlos opera com sutileza, na presença e na ausência da rima. Convocada, perfaz a harmonia de fundo, que é sobretudo, no seu caso, uma tensão logopaica, como dizia Pound. Mais ligada ao aspecto reflexivo, sem abrir mão de um motivo musical de fundo. Ao mesmo tempo, é capaz de esconjurar a utilização da rima, como para encontrar uma espécie de admirável mundo, cujas sonoridades, não fronteirizadas, possam perder-se numa grande aventura.  Sol descalço promove uma vocação minimalista, tradição marcante nas grandes linhas que atravessaram o século XX e se desdobram.  Outro elemento digno de nota, sobre a polaridade que organiza este livro, parte de uma razão geométrica e de uma certa dissolvência dessa mesma geometria, entre o áspero e o sinuoso, o contínuo e o abrupto. Um registro ora mais delicado, ora mais ruidoso.  Múltiplas esferas regem a possibilidade da expressão poética, humana, demasiadamente humana.  A obra de Carlos Cardoso parte do despojamento da poesia descalça, que se nutre da economia de meios para atingir um tônus pluridimensional, na ironia diante do mundo e na álgebra, capaz de indicar a delicada ligação entre mundo e liberdade.  Sol descalço reúne uma diversidade concentrada de tendências que confirma, uma vez mais, o percurso atento e sensível de um sol intenso delicado.
depoimento de antonio cicero
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depoimento de italo moriconi
depoimento de antonio carlos secchin
depoimento de carlos andreazza
depoimento de carlos cardoso
silviano santiago lê o poema “o rolar da pedra"
antonio cicero sobre o livro Melancolia
heloisa buarque de hollanda sobre o livro Melancolia 
antonio carlos secchin sobre o livro Melancolia
carlos vergara sobre o livro Melancolia
antonio cicero e carlos cardoso lêem  “o poema, o começo"
curta! poesia: “camaleão” – 1'23
a sensibilidade poética de carlos cardoso
manuel da costa pinto sobre o livro Na Pureza do Sacrilégio
 transbordar
pedra