MELANCOLIA
Destaque de sua geração, Carlos Cardoso é considerado o representante de uma nova poética no país. Seu novo livro chega com capa do renomado artista visual Carlos Vergara, em uma atmosfera em que a poesia e a imagem conversam, uma característica do poeta.
O livro traz orelha assinada por Heloisa Buarque de Hollanda e apresentação de Antonio Carlos Secchin, que aponta com precisão: “Num só verso o universo se condensa, e cabe à poesia ritualizar perpetuamente a encenação de um mundo sem origem e sem fim. É o que faz, com talento e consistência, Carlos Cardoso, em Melancolia.”
Sem dúvida, Melancolia é um livro forte, que apresenta ao leitor muitos motivos para refletir.
Rio de Janeiro: Editora Record, 2019
APRESENTAÇÃO
À primeira vista este Sol descalço parece marcado por menor teor de organicidade que a obra anterior de Carlos Cardoso, Melancolia (Record, 2019), A leitura atenta nos revela, porém, no miolo do livro, uma sequência de poemas fortemente articulados entre si. Ela incita o leitor a dividir a matéria do volume em três momentos. O momento inicial, introdutório, é formado pelos sete primeiros poemas do livro. Neles, o poeta apresenta sua poética, seu conceito de poesia, seu modo de vivê-la.
Em seguida, temos a eloquente sequência que constitui o miolo do livro. Seu coração, seu núcleo. Ela vai de “Eu serei noite e serei dia” (p. XX) até “Eu sigo a esmo” (p. XX). Alguns dos poemas nessa sequência, eles próprios seriais, integram o que há de melhor no cenário da poesia contemporânea brasileira. Refiro-me a “Tudo é pequeno demais para caber nas asas dos anjos”, “Um corvo no caldeirão da morte”, “O caminho dos cavalos”, “Sagrada fosse a fome” e “Eu sigo a esmo”.
Na visão deste que prefacia, sua força poética está na linguagem mais discursiva, nos versos mais longos que o prevalecente no restante da produção de Carlos, voltada para a depuração formal. Em poética, a lei da depuração reza: menos é mais. Elipse, lacuna, afasia. Afastamento da linguagem comum pela sintaxe e pelo sentido, não pelo vocabulário nem pelo registro discursivo.
No presente volume, a poética da depuração está presente nos poemas iniciais e nos finais. O contraste, aqui tão nítido, entre ela e uma poética da discursividade e do verso mais longo, mostra-se mais complexo e diverso. Tanto num quanto noutro existe uma riqueza mais dúctil de ritmos, a partir de um exercício de depuração consolidado que não mais teme ou se opõe a uma poética clássica do verso.
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Vejamos a sequência inicial de Sol descalço. O livro é colocado sob a égide da “pureza do sacrilégio” já no poema sem título de abertura: “que os dias acumulem-se// não na incerteza,/ mas na pureza do sacrilégio.” (p. XX). Temos aqui, portanto, reafirmada a proposta de uma poética do sacrilégio que se soma à da depuração. Ou seja, o discurso poético se apresenta como desafio ou provocação à norma religiosa. Extensivamente, a toda norma, desafiando amiúde as regras da regência gramatical.
E há a enigmática pureza nesse sacrilégio. O que seria a pureza do sacrilégio, já que este, por definição, pertence à ordem do impuro? No prefácio que escreveu para o livro de 2017, Silviano Santiago apontava para o caráter de oxímoro da expressão criada por Carlos. Oxímoro: um termo se opondo frontalmente ao outro num mesmo enunciado — pureza, sacrilégio. Na leitura de Silviano, o oxímoro seria força semântica definidora do modo de operar a linguagem praticado por Carlos.
O oxímoro, na sua convivência dramática de termos opostos, pressupõe sempre uma de quebra de expectativa. Ele é quebra de expectativa. Outro exemplo encontramos logo nas duas primeiras linhas do mesmo poema de abertura: “Que caia o amanhecer,/ o raiar do entardecer” (p. XX). O amanhecer cai como a tarde, a tarde raia como o amanhecer. A expectativa de sentido é desobedecida pela inversão. Quebras de expectativa são constantes de verso a verso e de estrofe a estrofe na poesia de Carlos Cardoso.
A decodificação da noção de pureza começa pelo que ela tem de análogo com as opções formais do poeta. Além de incidir sobre o verso, a depuração é depuração do sacrilégio. Afirmemos: em Sol descalço, o dado de pureza é o sacrilégio cometido antes de ser reconhecido como tal, similar ao pecado da criança que não sabe o que é pecado. A criança é imagem recorrente nos poemas deste livro, como em “Brincando” (p. XX): “o silêncio é minha arte/ e o criei assim, brincando.” (p. XX). Vemos que o poeta presta homenagem ao fundamento lúdico de certa ideia de poesia na modernidade. A ideia de que a raiz do poético é análoga ao olhar livre da criança, frente ao mundo e à linguagem. Lemos, no mesmo poema: “talvez as palavras me fujam/ e eu me disfarce de criança,/ o silêncio é meu pecado/ e meu verso, a esperança.” (p. XX).
O poeta apenas se disfarça de criança. Finge ser o que deveras é? Mais à frente, ele se autoqualificará de “atrevido” (p. XX). A pureza é o sacrilégio disfarçado, entre o silêncio e o verso. Não se trata portanto do sacrilégio da blasfêmia e da ofensa e sim de um silêncio distanciado, de um afastamento, talvez involuntário, descompromissado do som e da fúria do mundo. Estamos longe da sátira. Estamos diante de uma ludicidade compenetrada, introspectiva, construída, mas não totalmente indisponível. Frente ao abismo da introspecção, o verso é tênue esperança, pela abertura via palavra.
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Na sequência de poemas formada por “Sussurros”, “Unha crescendo na carne”, “Poeira que ferve”, “É que o vento cresce à medida que o vento sopra” (p. XX-XX), a importância da palavra sobressai sobre a autodefinição do poeta. Em “Sussurros”, a palavra é “pingo no escuro” (p. XX), em “Unha crescendo na carne”, é “palavra qualquer contento” (p. XX), em “Poeira que ferve” é “Palavra ancorada no peito, / pássaros, pássaros” (p. XX). Finalmente, no poema “É que o vento...”, os versos talvez mais conhecidos de Carlos: “eu amo os poetas e a poesia porque são belos,/ e as coisas, porque são brutais” (p. XX).
Não temos razão de duvidar que a poeira que ferve não seja a poeira cósmica e que o vento autoinsuflante não seja o vento do espírito. Ocorre, porém, que “há uma dor mineral em meu corpo” (um belo verso). Em torno do cosmo, do espírito e do corpo mineral desdobrar-se-á a poética de Carlos Cardoso. Pois é com esses dois poemas, o da poeira e o do vento, que o livro dá o salto para o que foi aqui chamado de “miolo” do volume (não no sentido do objeto físico livro, mas do texto em si, do conteúdo). O miolo que, se minha hipótese for correta, revela a motivação originária do talento poético de Carlos Cardoso.
Motivação sacrílega, em aguda fricção e afastamento do discurso religioso. As referências se sucedem, totalmente desfocadas, deslocadas, descontextualizadas, mas não satirizadas nem achincalhadas, são ecos do religioso que fragmentariamente pontuam a palavra poética de Carlos Cardoso: “tenho uma outra face”, “o sermão de Maria”, “sobre o meu corpo/ repousa a ferida”, “flagelo”, “o fel e um córrego de leite”, “vermelho chão do inferno”, “redoma de fogo, objeto de Cristo/ cruz fincada no desespero”, “fábulas de chuva/ sob o grito dos anjos”, “o útero de Cristo” (aqui nos aproximamos da blasfêmia), “manto dominical,/ todos a comer e beber/ a semente da hipocrisia,/ Deus?/ E tudo é pequeno demais,/ “oh, Criador”,/ para caber nas asas dos anjos.” A partir da parte II do poema “Tudo é pequeno demais para caber nas asas dos anjos”, a referência cristã abre espaço a fugazes cenas pagãs (adoração do bezerro), embora termine com “do sangue/ das palavras crucificadas.” (p. XX).
Na contracorrente da poética da depuração, emerge um eco de fervor apocalíptico que vai num crescendo até chegar ao belo poema “Um corvo no caldeirão da morte”, dedicado a nada mais nada menos que Dylan Thomas. O tom desse poema relativamente longo sobre a morte ecoa a fluidez eloquente da poesia do galês, o que verificamos também na primeira parte de “O caminho dos cavalos” e no poema “Eu sigo a esmo”. Do anjo, ao corvo, aos cavalos — estes por algum motivo me trazem a memória de Ivan Junqueira, o poeta da melancolia e dos embaldes embates da subjetividade. O presente prefaciador (apreciador) considera salutar no cenário intelectual da poesia brasileira a presença dessa poética atravessada pela exaltação de um pathos, certamente contido.
Abordar a morte é introduzir o tema do fim. Fim dos tempos, fim da vida, fim da herança paterna, fragmentação da palavra religiosa. Nesse plano, a poesia de Carlos Cardoso, de ideias que se fragmentam e imagens que se acumulam, tem por pano de fundo a indagação existencial, presente e ausente, presente na ausência. Tal inquietação vem com força total nos poemas “Sagrada fosse a fome” (p. XX) e “Eu sigo a esmo” (p. XX). Em “Sagrada...” o Senhor (o pai, o Deus, a Lei) é que é qualificado — denunciado — de “sarcástico”. “Eu sigo a esmo” é um poema de redenção.
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Para encerrar, vale a pena, depois do percurso, no fechamento do exemplar, voltar a seu título. O “sol descalço” me sugere qualidades da poesia de Carlos. A começar pelo despojamento, inclusive das sandálias da humildade, que no entanto estão presentes pelo tom menor e introspectivo adotado. Uma poesia que busca a transparência, a luz paradoxalmente cegante do sol, tendo por instrumento exploratório a valoração calma da densidade existencial das palavras.
Italo Moriconi
A leitura de Coragem, de Carlos Cardoso, pode bem ser iniciada pela comparação com dois de seus títulos anteriores, Melancolia (2019) e Sol descalço (2021). Além de dar a ver a persistência do empenho poético do autor, essa enumeração permite perceber um movimento constitutivo de sua dicção. Nela se arma uma constante tensão: entre abstração e concretude, entre afetos distintos, como também entre pensamento e visualidade – visualidade esta entendida como efeito de um trabalho que transforma o visível em imagem.
De fato, e conforme já percebido anteriormente por outras leituras críticas, tensão, contradição, paradoxo são movimentos constantes de sua dicção. Isso pode ser percebido numa comparação entre Melancolia e Coragem, títulos de livros publicados em um intervalo de quatro anos. Se em princípio parecem ser emoções não só distintas como opostas, sugerindo uma mudança de visão de mundo, podem, conforme seu uso, e ao contrário, ser mais uma vez signos da presença simultânea de duas forças que habitam sua poesia.
Também na própria menção a um “sol descalço”, que dá nome ao terceiro livro de Carlos, percebe-se a manifestação desse movimento. As duas palavras, unidas, se esvaziam cada uma de sua denotação específica e, ligadas a uma mesma construção visual, conjugam dois tipos de referência - humana e não humana, física e existencial, de plenitude e de carência. Sua ligação adquire assim caráter alegórico. E, na poesia de Carlos, a presença de paisagens “naturais” é constante, sempre associada a situações existenciais, como o estar “descalço” – pobreza, despojamento, humildade? Profanação de uma referência franciscana, como sugeriu Italo Moriconi na apresentação de Sol descalço?
Nesse sentido, suas paisagens problematizam mesmo a ideia de naturalidade- acompanhando uma reflexão filosófica fundamental sobre a relação entre o homem e o mundo, como criatura entre criaturas, muito aquém de qualquer pretensão antropocêntrica. A capa de Coragem, uma pintura de Daniel Senise, Menina, osso e cachorro, também nos leva nessa direção: menina e cão em posição semelhante, aproximados, ainda que distantes, por uma negritude absoluta que os transforma em puras formas em defrontamento e perspectivação. Aí aparecem ambos, em torno de um osso, daquilo que os irmana: a corporeidade?, a fome? a vida como copresença de infâncias, restos e fins?
E, para dar a ver essa problematização, Carlos usa a imagem do vento, que afeta intermitentemente o olhar, a vida, a escrita da vida, o sujeito que nela se escreve. Este, por isso mesmo, escreve como quem desenha “Um mapa no ar” – título do poema escolhido para a contracapa, que nos diz: “Antes de escrever e rever a vida, / desenho um mapa no ar/ para que o vento tenha aonde levar/ meu traçado perdido”. Em “Agenda”, de novo temos esse duplo movimento: “.... então refaço o caminho do vento/ e vou levando os dias/ como uma agenda a ser cumprida”. Ou ainda - trazendo agora para o interior de um mesmo poema a conjunção de melancolia e coragem - lembrar e perder, retornar e insistir, em “Embaralhado pela neblina”: “por mais que tente contê-lo, / meu coração bate bravamente. / Então refaço o caminho dos ventos/ embaralhado pela neblina. ”
Bem emblemático desse movimento é também o poema “ O mirante”, no qual parecem ecoar traços do poema de Mário de Andrade, “A meditação sobre o Tietê”, considerado por Antonio Candido uma forma de testamento. Nele, o poeta modernista, sempre em conflito com suas próprias crenças, no alto da ponte das Bandeiras, contempla o rio e, em suas águas noturnas, as sombras e brilhos, formas fugidias da cidade de São Paulo, metonímia do processo de formação e modernização brasileiras. No poema de Carlos reaparece um bordão do poema de Mário - “É noite! ” – cuja forma hoje pouco usual sugere um efeito de memória literária.
Nesse poema de Carlos, como antes no de Mário, mais uma vez, há a desierarquização da relação entre o humano e o não humano, como efeito do paralelismo e do enjambement que aproximam e tensionam árvores, pássaros e homens nos versos: “À noite, quando as estrelas /assumiram o céu, os pássaros/ recolheram-se nas árvores, /os homens recolheram-se /em cascas e tudo silenciou. ” Neles há ainda a potente irrupção do estranho “cascas”, quebrando a expectativa do familiar “casas” - que Freud reconheceu, através da noção de Unheimliche, como um componente importante de nossa vida psíquica em sua relação de diferença consigo mesma e com o mundo. Reaparecem as nuvens, pardas, dessa vez quase escondendo as formas lúdicas a que são associadas - “castelos de anjos”, “carneiros de lã branca”. Reaparece também uma referência religiosa, como a que enxergamos no sol franciscano, descalço: agora é o nascimento crucificado do filho, profanado, pois impotente, carregando agora somente a sua própria dor, e não a de toda a humanidade.
Outros ecos de poetas modernos ressoam na leitura desse e de outros poemas do livro. Neste caso, o “Acalanto para um seringueiro, ” em que Mário se ressente de ser ao mesmo tempo próximo e distante dos irmãos acreanos: “Num amor-de-amigo enorme / Brasileiro, dorme! / Brasileiro dorme. / Num amor-de-amigo enorme / Brasileiro, dorme. ” Ou o belíssimo ‘Consolo na praia”, de Drummond, cuja estrofe final conclui: “Tudo somado, devias/ precipitar-te, de vez, nas águas. / Estás nu na areia, no vento…/ Dorme, meu filho”. Em “O mirante” de nosso Carlos de agora, em vez de ver a tudo e legá-lo ao filho, como no provérbio tradicional, o sujeito poético sabe ver a nudez, o vento, o nada, mas também consolar e animar: “Do mirante, nada. / Deita meu filho, proteja-se em/ seus sonhos pois a dor que carregas/ te pertence, não é fardo leve/tampouco para sempre. / Deita meu filho, dorme, dorme. ”
Na visão imagética de Mário sobre e no rio, há uma forte reativação da relação entre paisagem e meditação, característica da poesia moderna desde o romantismo. Em seu poema ela é encenada de modo convulsivo, eloquente, noturno, num misto de constatações terríveis e expectativas utópicas pequeninas, frágeis em que convivem todos os tipos de seres vivos. Já na visão de Carlos, o mirante, assim como a ponte andradina, signo de uma visão clara e ampla de um ponto de vista panorâmico e dominador do sujeito sobre o que contempla, se transforma em espaço de uma visão também noturna. Mas, diferentemente de Mário, vemos uma sutil relação de contraste entre meditação e discursividade quase prosaica, tendente à depuração, alimentada de uma outra deriva importante de nossa poesia moderna.
Nessa direção, é significativa nesse poema de Carlos a referência a uma imagem característica da poesia de João Cabral de Melo Neto – a faca – que aparece, em meio à contemplação, para, emocional e reflexivamente, dar a ver mais uma vez o vínculo entre melancolia e coragem: “ sóbrio, tomei com uma faca/ a sílaba que me restou, e era noite, / pairava o silêncio, a hipocrisia, / e o lamento do que não foi. ” Em poema dedicado ao escritor pernambucano, “Poeta-engenheiro”, Carlos aproveita um dado de sua própria atividade profissional para endereçar-se a Cabral e irmanar-se a ele na relação entre poesia e vida, construída poeticamente com silêncio, esforço e imaginação. E nos convida, desse modo, a revisitar a poética cabralina - tão exaltada por suas racionalidade, objetividade e clareza - e constatar, conforme tende a ver a crítica mais contemporânea, que seu trabalho com a imagem visual também se deixa alimentar pela irrupção de nuvens e emoções: “João, somos poetas-engenheiros, / [....] quando percorremos nossos versos/ falando no silêncio/ e edificando com as palavras, / percorremos as cidades/ em uma nuvem carregada/ de imaginação, / com um pouco de maestria/ e muito de emoção. ”
Em função desses aspectos, dentre tantos outros, que aqui pudemos comentar, o trabalho poético de Carlos Cardoso, pela superação de dicotomias convencionais, alimenta algumas importantes tendências da poesia contemporânea. São elas: o reinvestimento no lirismo, força afetiva de subjetivação, que impulsiona a relação reflexiva entre um eu desacomodado e o mundo belo e violento; a releitura de poetas da modernidade, de modo a conjugar a discursividade prosaica e o exercício de depuração; o trabalho com a imagem visual, hegemônica na vida contemporânea, de modo a torná-la instrumento de indecidibilidade e pluralização.
Creio ser importante atentar para essa indecidibilidade, provocada pela articulação do diverso e do contraditório. Creio que ela possibilite a Carlos Cardoso e a seu leitor estar suspensos entre a melancolia e a coragem, transformando o niilismo decorrente do arruinamento em força de continuação rumo ao que não se sabe com certeza o que será, mas que há de vir.
Célia Pedrosa
SOL DESCALÇO
Em seu livro de estreia, o poeta Carlos Cardoso dialoga diretamente com a produção do surrealismo na literatura brasileira, que tem Murilo Mendes e Jorge de Lima como maiores representantes. Na busca por sua voz, Carlos Cardoso apresenta uma expressão poética autêntica, como afirma Afonso Henriques Neto no texto de apresentação. Seus versos, ao longo do percurso, indicam a construção de um corpus poético introspectivo, com instantes luminosos, que conduzem o leitor a ampliar o olhar fora do cotidiano ordinário, focando a atenção para além do lugar comum. Um trabalho marcado por versos reflexivos, através da conversa intertextual com pares: Gilberto Mendonça Teles e Eucanaã Ferraz, poetas cujo o cuidado com a linguagem é condição primordial para construção dos versos.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2004
ISBN 85-7577-139-6
60 páginas
ARQUITEXTO
para Eucanaã Ferraz
Corações crispados,
paixões acampadas nos olhos
– segredos!?
não demonstre nenhuma lágrima,
todo desejo é oculto enquanto vale.
“Tudo e nele nada se contém”.
Ouso, imploro aos deuses
que não rimem as palavras,
afinal o silêncio ecoa,
e os verbos elocubrados no espaço
são mais que metáforas,
são passos,
em que o poeta vai além dos laços.
Pô, esses alvéolos de arquitextura,
tão úmida e forte ainda ressoam.
E não chore amigo,
a vida é a tenra carne da morte.
BRINCANDO
para Gilberto Mendonça Teles
1.
Talvez as palavras me fujam
e eu me disfarce de poeta,
o silêncio é minha casa
e a construo em linha reta.
2.
Talvez as palavras me fujam
e eu me disfarce, cortejante,
o silêncio é uma pedra
e a chamo diamante.
3.
Talvez as palavras me fujam
e eu me disfarce de criança,
o silêncio é meu pecado
e meu verso a esperança.
4.
Talvez as palavras me fujam
e eu me disfarce, assim, amando.
o silêncio é minha arte,
e o criei assim, brincando.
O CAMINHO DOS CAVALOS
I
com os mapas do informe rastreei a cidade dos mortos
ossos e paraísos e gesso em estilhaços
oravam ao solitário vôo do ganso
a morte os demônios e os anjos
habitavam os estábulos sagrados,
casa sobre pedra era segredo
pocilga rosnando favos guerra faísca
tudo era desordem nada era poema
palavras ossos paredes sob a chuva de sangue
e a cidade dos mortos era pedra pedra
ossos cânticos talvez fossem
o príncipe de gelo a tangenciar a morte
nos caminhos dos cavalos,
rochosos ocultos perdidos nos favos
II
a dor a morte e os cogumelos de areia
esculpiram o sebo e o sal nos olhos da sereia
o sol e o mar sobre as planícies de Israel
cantaram aos pés do chifre do unicórnio perdido
Adão e Abraão e as vértebras de Jacó
deram um nó na garganta da efêmera voz em desalinho
baleias vertigens e fêmeas em seus ninhos
pegadas da misericórdia de um cego poeta
que nasce a cada ferida e morre ferido
em rochas gesso e ossos verdes de luz
III
O fel de Cristo e os porões do inferno
feitos a patadas de gente e esferas de fogo
doce farpa no cérebro ardente da palavra túmulo
caminhos descobertos prodígios meninos
pó destinado a Cristo, raposa copiosa a engolir a carne
áspera garganta a reinventar o inferno
velhas agonias no cenário cambiante do pássaro ruidoso
fluida gestação de tudo e tudo é nada
cuspida de vinagre sobre pedra palavras
vestido branco da metáfora absurda
folhas ferro fogo longos olhos ébrios
espelhos do túmulo cavado pelas patas do poeta
ovos celestes cálices feixes do mito, minto
oco vento, memória áspera, raiz do pensamento
IV
confundi os cotovelos mas não o coração
repousa no caminho dos cavalos
o submerso domínio da palavra morte
serpentes mordidas, diabos feridos,
cidade dos mortos a ressurgir na sombra do medo
dos cegos olhos que amanhã
tocarão as órbitas sagradas da tempestade
raiz da unha crânio róseo do chumbo
êxodo lírio em sol e mel
Vênus rastreada além dos jardins d’alma
espinhos recurvados jamais reconhecidos
como pedra palavras coices no caminho do fogo
espectro imaculado nos caminhos dos cavalos,
rochosos ocultos perdidos nos favos
QUAL DAS GUERRAS QUE RESSUREIÇÃO?
quão dourado é este sol
terra firme mar intenso
qual das guerras que ressurreição?
há de fecundar do meu invento.
oh, alumiar a Terra Santa
não é cria de pouco vento
qual das guerras qual razão?
surgirá do homem vão,
e lhe dará contentamento
SAGRADA FOSSE A FOME
sarcástico na garganta do apego
um gigante branco chamado fome ressoa abrasador
ver criança pescoço da pele comer coxinhas de restos humanos
e putas castas a orar nas catedrais do voto
é farejar o absurdo na calçada do abismo
tão negro como o carvão só a mandíbula doce
sagradas primaveras por onde navego
cogumelo a só no escuro, criança criança
cidades demiurgas suplícios infindáveis
selvagens sacerdotes na raiz da Terra Fome
sarcástico é o senhor
sarcástico é o senhor
correio de esmolas, crianças famintas
em meu quarto esguio salmo túmulo (grite)
coisa muda ferradura sem curva
trêmula a voz da fome grasna
o efeito do feto morto na pança da mãe
cavalos e anjos em prantos
jovens príncipes, criança criança
fogo puro a alimentar a razão (grite)
sarcástico é o senhor
sarcástico é o senhor
DEDOS FINOS E MÃOS TRANSPARENTES
O segundo livro de poemas do poeta Carlos Cardoso é uma confirmação de seu ofício na literatura brasileira através de um olhar sensível ao cotidiano e a produção literária contemporânea. “A beleza alucinatória de seus achados poéticos” – como destacou Carlito Azevedo a respeito da originalidade da poética de Carlos Cardoso em sua estreia – abre espaço para imagens mais delicadas, sem perder “a fúria motriz das imagens alucinadas”. O poeta volta a atenção para o cuidado com os versos, trabalhando a sutileza da escolha de cada palavra, aliada a ousadia de seguir adiante: “vá à ponta de um abismo, / crie coragem, respire fundo, e dê um salto”. É, justamente, a coragem de dar um salto em sua própria linguagem que o poeta busca neste livro, para abrir novas janelas em sua trajetória.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2005
ISBN 85-7577-220-1
124 páginas
A QUEM INTERESSAR POSSA
Por entre lábios de nome todo amor
pinto palavras que se afiguram no incerto,
como labirintos que desaguam no deserto
e lâminas que assassinam o sempre certo.
O infinito é traçado a dedo e tinta,
como borboletas bailando sob nuvens,
e beija-flores chamando todo amor.
Ergo no peito a história de uma chama,
como o erguer de uma estátua que proclama.
Cada passo de um amor que arde,
queima, estraçalha, mas não ama.
CADA OSSO
Quando nossos corpos fundirem-se,
cada osso se desintegrará,
o gozo irá surgir aos poucos,
até que nossas almas se toquem,
meus olhos não chorarão prazer,
meu corpo não soluçará dor,
mas reagirá forte,
a qualquer tentativa de cura.
ESCULPIR A LUA A NANQUIM
Uma maçã com dez pecados,
a primeira mordida quem Dara?
Os mares, os raios, as estrelas.
Eu?
Mesclar o azul com o amarelo,
e nos dias de prazer cantarolar.
Rima que rima casa sol e mel.
Desenhar a lua, esculpi-la nua sobre o papel.
O BONDE DO SILÊNCIO
Já é noite e o bonde do silêncio
permanece intacto.
Nas ruas as pessoas observam os
pássaros a sobrevoarem as
correntezas.
E tudo permanece intacto.
Os amantes, os Deuses, as estátuas.
Só a poesia perambula.
Acaso os versos caminham ágeis e
desapercebidos.
E tudo permanece intacto.
O POETA E SEU POEMA
Vigas e paredes relutam em moldar-se,
Hermética paisagem de pedra areia e cimento.
Hipócrita o poeta xinga sintaxes, chuta as palavras,
E crava estacas profundas na ânsia de tocar o intangível.
Soberbo ele rende-se, dúbio e orgulhoso do nada.
NA PUREZA DO SACRILÉGIO
Depois de mais de dez anos, Carlos Cardoso volta à poesia com Na Pureza do Sacrilégio. O livro chega com a chancela de textos elogiosos de Antonio Cicero e do crítico Silviano Santiago.
“A escrita poética desnuda a pureza pelo sacrilégio para purificá-la ainda mais; desnuda o sacrilégio pela pureza para conspurcá-lo ainda mais”, escreve Santiago, que aproxima Carlos Cardoso a Fernando Pessoa, Octavio Paz e João Cabral de Melo Neto para apresenta-lo ao leitor.
O crítico apoia-se nas teorias do linguista russo Roman Jakobson para apontar o oximoro – aliança de palavras aparentemente contraditórias, que em vez de excluírem-se, complementam-se – como uma das chaves de leitura da obra. “O poema perambula, mas tudo permanece intacto – eis a lição de poesia”, escreve.
Além do prefácio de Silviano Santiago, o livro tem a orelha assinada por Antonio Cicero, que aponta com precisão “uma das grandes qualidades deste livro é que nele se encontram diversos poemas que oferecem ao leitor experiências originais, intensas e verdadeiras”.
O livro também é construído em uma atmosfera em que a poesia e as imagens se comunicam de forma harmônica, composto por vários quadros produzidos pela artista plástica Lena Bergstein inspirados nos poemas.
Sem dúvida, Na Pureza do Sacrilégio, de Carlos Cardoso, é um livro FORTE que apresenta ao leitor muitos motivos para refletir sobre os vários temas escritos ou sobre a vida que é o tema principal.
São Paulo: Ateliê Editorial, 2017
CAMALEÃO
Como um camaleão rastejo pelo
silêncio do meu quarto.
É poesia o encontro das paredes?
São ópio as estrelas aplumadas em
cada esquina do meu ego?
Ou será benevolente a lágrima que escorre por
minh’alma quando brado louco por felicidade?
Os arredores repletos de melancolia
ainda se refazem do gelo.
A ausência de um ombro, de um
corpo catatônico que seja,
faz-me lembrar o quanto era bom
o diálogo com os meus olhos.
Tocar a escuridão quando a voz do
desespero insistia no apego.
Mozart me enlaça com um fio de
náilon na garganta.
São as trevas rodeadas de luzes
intangíveis,
metáfora do abominável descaso
público a um quase morto.
Ninguém, nem mesmo a solidão, tem
mãos assim tão pequenas.
EU SEREI NOITE E SEREI DIA
Tenho uma outra face
que não é a rebeldia do exílio,
conto com a morte
e uma palavra de alívio
para quando o sermão de Maria
ocultar o sublime sonho
do unicórnio perdido,
saberei que o tempo
é apenas uma gota d’água
a beber o saber etéreo
da fugaz sabedoria,
sempre que as coisas
forem tristes
e o rio guardar em si,
o ser
por onde o ser não navega,
eu serei noite e serei dia,
e serei dia e serei noite.
NÃO MAIS ESTRANHO QUE ISTO
Não consigo ver o que me é dito.
São janelas abertas trazendo o vento
que aporta em qualquer porto.
E você ainda perambula em busca
do que não lhe pertence.
E por vezes retornas,
ao que tanto procuras,
e tão perto está.
Deve ser essa ostra
fingindo-se de borboleta.
Com essa máscara de inconstância
que você veste a qualquer preço.
E se esvai, e pronto, é o começo.
Retornas de asas abertas
a exalar paixão ao sol do meio sol.
Ainda ontem a resplandescência dos
seus olhos
cintilou o sono sufocante do
querer e não querer,
ouço passos a caminho da felicidade,
e ouso soprar as incertezas que
pairam nos porquês.
São essas figuras do passado
que volta e meia invadem o presente.
E em um alívio de viverem
acorrentadas,
respiram o perfume de sua essência.
E eu continuo a não saber
o caminho da solidão dos seus braços.
O POEMA, O COMEÇO
Indago, por onde iniciar essa resenha.
De dentro para fora, de um lado para o outro,
sem foco, com rima, com ou sem sentimento.
Lamento, tormento, piedade, felicidade.
Simples feito a natureza, complexo como a humanidade,
Agudo, fraco, obtuso, disforme,
angelical ou demoníaco,
soberbo, decente, incoerente, desejoso,
voluptuoso e indiferente.
Com as mãos sujas de argila, o copo cheio de tequila,
e aquela menina que tanto desejo, seu beijo.
Ou abordando a tristeza, a sutileza, as formas de beleza,
as luzes, a ribalta.
Por onde começar essa bossa, esse texto,
essa nossa vossa discordância,
pela juventude, tema de infância,
pela infância, pureza e relevância.
Afinal, iniciarei pela instância, ininterrupta discrepância.
VENTANIA
para Antonio Cicero
Iluminar a sombra
e torcer pelo sol
até que venha a chuva,
sapatear pela escuridão
com trovões e ventania,
molhar os dedos
sentir o frio e o arrepio
que é estar.
.
[AUDIO BOOK]
42 poemas do livro Na Pureza do Sacrilégio
recitados pelo autor.
Faixa bônus: “Engenheiro-poeta”.
Ouça a faixa 15:
Luz da Cidade, 2017
Coleção Poesia Falada Vol. 23
A leitura de Coragem, de Carlos Cardoso, pode bem ser iniciada pela comparação com dois de seus títulos anteriores, Melancolia (2019) e Sol descalço (2021). Além de dar a ver a persistência do empenho poético do autor, essa enumeração permite perceber um movimento constitutivo de sua dicção. Nela se arma uma constante tensão: entre abstração e concretude, entre afetos distintos, como também entre pensamento e visualidade – visualidade esta entendida como efeito de um trabalho que transforma o visível em imagem.
De fato, e conforme já percebido anteriormente por outras leituras críticas, tensão, contradição, paradoxo são movimentos constantes de sua dicção. Isso pode ser percebido numa comparação entre Melancolia e Coragem, títulos de livros publicados em um intervalo de quatro anos. Se em princípio parecem ser emoções não só distintas como opostas, sugerindo uma mudança de visão de mundo, podem, conforme seu uso, e ao contrário, ser mais uma vez signos da presença simultânea de duas forças que habitam sua poesia.
Também na própria menção a um “sol descalço”, que dá nome ao terceiro livro de Carlos, percebe-se a manifestação desse movimento. As duas palavras, unidas, se esvaziam cada uma de sua denotação específica e, ligadas a uma mesma construção visual, conjugam dois tipos de referência - humana e não humana, física e existencial, de plenitude e de carência. Sua ligação adquire assim caráter alegórico. E, na poesia de Carlos, a presença de paisagens “naturais” é constante, sempre associada a situações existenciais, como o estar “descalço” – pobreza, despojamento, humildade? Profanação de uma referência franciscana, como sugeriu Italo Moriconi na apresentação de Sol descalço?
Nesse sentido, suas paisagens problematizam mesmo a ideia de naturalidade- acompanhando uma reflexão filosófica fundamental sobre a relação entre o homem e o mundo, como criatura entre criaturas, muito aquém de qualquer pretensão antropocêntrica. A capa de Coragem, uma pintura de Daniel Senise, Menina, osso e cachorro, também nos leva nessa direção: menina e cão em posição semelhante, aproximados, ainda que distantes, por uma negritude absoluta que os transforma em puras formas em defrontamento e perspectivação. Aí aparecem ambos, em torno de um osso, daquilo que os irmana: a corporeidade?, a fome? a vida como copresença de infâncias, restos e fins?
E, para dar a ver essa problematização, Carlos usa a imagem do vento, que afeta intermitentemente o olhar, a vida, a escrita da vida, o sujeito que nela se escreve. Este, por isso mesmo, escreve como quem desenha “Um mapa no ar” – título do poema escolhido para a contracapa, que nos diz: “Antes de escrever e rever a vida, / desenho um mapa no ar/ para que o vento tenha aonde levar/ meu traçado perdido”. Em “Agenda”, de novo temos esse duplo movimento: “.... então refaço o caminho do vento/ e vou levando os dias/ como uma agenda a ser cumprida”. Ou ainda - trazendo agora para o interior de um mesmo poema a conjunção de melancolia e coragem - lembrar e perder, retornar e insistir, em “Embaralhado pela neblina”: “por mais que tente contê-lo, / meu coração bate bravamente. / Então refaço o caminho dos ventos/ embaralhado pela neblina. ”
Bem emblemático desse movimento é também o poema “ O mirante”, no qual parecem ecoar traços do poema de Mário de Andrade, “A meditação sobre o Tietê”, considerado por Antonio Candido uma forma de testamento. Nele, o poeta modernista, sempre em conflito com suas próprias crenças, no alto da ponte das Bandeiras, contempla o rio e, em suas águas noturnas, as sombras e brilhos, formas fugidias da cidade de São Paulo, metonímia do processo de formação e modernização brasileiras. No poema de Carlos reaparece um bordão do poema de Mário - “É noite! ” – cuja forma hoje pouco usual sugere um efeito de memória literária.
Nesse poema de Carlos, como antes no de Mário, mais uma vez, há a desierarquização da relação entre o humano e o não humano, como efeito do paralelismo e do enjambement que aproximam e tensionam árvores, pássaros e homens nos versos: “À noite, quando as estrelas /assumiram o céu, os pássaros/ recolheram-se nas árvores, /os homens recolheram-se /em cascas e tudo silenciou. ” Neles há ainda a potente irrupção do estranho “cascas”, quebrando a expectativa do familiar “casas” - que Freud reconheceu, através da noção de Unheimliche, como um componente importante de nossa vida psíquica em sua relação de diferença consigo mesma e com o mundo. Reaparecem as nuvens, pardas, dessa vez quase escondendo as formas lúdicas a que são associadas - “castelos de anjos”, “carneiros de lã branca”. Reaparece também uma referência religiosa, como a que enxergamos no sol franciscano, descalço: agora é o nascimento crucificado do filho, profanado, pois impotente, carregando agora somente a sua própria dor, e não a de toda a humanidade.
Outros ecos de poetas modernos ressoam na leitura desse e de outros poemas do livro. Neste caso, o “Acalanto para um seringueiro, ” em que Mário se ressente de ser ao mesmo tempo próximo e distante dos irmãos acreanos: “Num amor-de-amigo enorme / Brasileiro, dorme! / Brasileiro dorme. / Num amor-de-amigo enorme / Brasileiro, dorme. ” Ou o belíssimo ‘Consolo na praia”, de Drummond, cuja estrofe final conclui: “Tudo somado, devias/ precipitar-te, de vez, nas águas. / Estás nu na areia, no vento…/ Dorme, meu filho”. Em “O mirante” de nosso Carlos de agora, em vez de ver a tudo e legá-lo ao filho, como no provérbio tradicional, o sujeito poético sabe ver a nudez, o vento, o nada, mas também consolar e animar: “Do mirante, nada. / Deita meu filho, proteja-se em/ seus sonhos pois a dor que carregas/ te pertence, não é fardo leve/tampouco para sempre. / Deita meu filho, dorme, dorme. ”
Na visão imagética de Mário sobre e no rio, há uma forte reativação da relação entre paisagem e meditação, característica da poesia moderna desde o romantismo. Em seu poema ela é encenada de modo convulsivo, eloquente, noturno, num misto de constatações terríveis e expectativas utópicas pequeninas, frágeis em que convivem todos os tipos de seres vivos. Já na visão de Carlos, o mirante, assim como a ponte andradina, signo de uma visão clara e ampla de um ponto de vista panorâmico e dominador do sujeito sobre o que contempla, se transforma em espaço de uma visão também noturna. Mas, diferentemente de Mário, vemos uma sutil relação de contraste entre meditação e discursividade quase prosaica, tendente à depuração, alimentada de uma outra deriva importante de nossa poesia moderna.
Nessa direção, é significativa nesse poema de Carlos a referência a uma imagem característica da poesia de João Cabral de Melo Neto – a faca – que aparece, em meio à contemplação, para, emocional e reflexivamente, dar a ver mais uma vez o vínculo entre melancolia e coragem: “ sóbrio, tomei com uma faca/ a sílaba que me restou, e era noite, / pairava o silêncio, a hipocrisia, / e o lamento do que não foi. ” Em poema dedicado ao escritor pernambucano, “Poeta-engenheiro”, Carlos aproveita um dado de sua própria atividade profissional para endereçar-se a Cabral e irmanar-se a ele na relação entre poesia e vida, construída poeticamente com silêncio, esforço e imaginação. E nos convida, desse modo, a revisitar a poética cabralina - tão exaltada por suas racionalidade, objetividade e clareza - e constatar, conforme tende a ver a crítica mais contemporânea, que seu trabalho com a imagem visual também se deixa alimentar pela irrupção de nuvens e emoções: “João, somos poetas-engenheiros, / [....] quando percorremos nossos versos/ falando no silêncio/ e edificando com as palavras, / percorremos as cidades/ em uma nuvem carregada/ de imaginação, / com um pouco de maestria/ e muito de emoção. ”
Em função desses aspectos, dentre tantos outros, que aqui pudemos comentar, o trabalho poético de Carlos Cardoso, pela superação de dicotomias convencionais, alimenta algumas importantes tendências da poesia contemporânea. São elas: o reinvestimento no lirismo, força afetiva de subjetivação, que impulsiona a relação reflexiva entre um eu desacomodado e o mundo belo e violento; a releitura de poetas da modernidade, de modo a conjugar a discursividade prosaica e o exercício de depuração; o trabalho com a imagem visual, hegemônica na vida contemporânea, de modo a torná-la instrumento de indecidibilidade e pluralização.
Creio ser importante atentar para essa indecidibilidade, provocada pela articulação do diverso e do contraditório. Creio que ela possibilite a Carlos Cardoso e a seu leitor estar suspensos entre a melancolia e a coragem, transformando o niilismo decorrente do arruinamento em força de continuação rumo ao que não se sabe com certeza o que será, mas que há de vir.